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Lívia Sant’Anna Vaz

É preciso democratizar a própria Justiça

Garantir diversidade é um compromisso internacional e dever constitucional

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Lívia Sant’Anna Vaz

Doutora em ciências jurídico-políticas (Universidade de Lisboa) e mestre em direito público (UFBA), é promotora de Justiça do Ministério Público do Estado da Bahia e atua na Promotoria de Justiça de Combate ao Racismo e à Intolerância Religiosa; autora de “Cotas Raciais” (ed. Jandaíra)

Na semana passada, no dia 3 de julho, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) —em parceria com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada e a Universidade de Lisboa— lançou o Perfil étnico-racial do Ministério Público brasileiro.

É emblemático que o lançamento tenha acontecido justamente no Dia Nacional de Combate à Discriminação Racial, data que marca a promulgação da primeira lei antirracista do Brasil: a Lei nº 1.390, de 1951. A iniciativa do projeto de lei, de autoria do então deputado federal Afonso Arinos, ocorreu após a dançarina e coreógrafa estadunidense Katherine Dunham, em sua estreia no Theatro Municipal de São Paulo, anunciar que teria sido impedida de se hospedar no luxuoso Hotel Esplanada, por ser "uma mulher de cor". A notícia caiu como uma bomba no país da democracia racial!

Estátua da Justiça, vandalizada no dia 08 de janeiro na Praça dos Três Poderes é lavada por agente de limpeza - Gabriela Biló/Folhapress

De lá para cá, o que mudou? Apesar dos avanços na legislação antirracista, 72 anos depois, mulheres negras seguem sendo "barradas no baile" do racismo patriarcal. As portas da democracia não se abriram para as pessoas negras e a "Justiça brasileira" ainda "dança conforme a música" antidemocrática; uma espécie de samba de uma nota (ou melhor, de uma cor) só!

Aquilo que a Justiça de olhos vendados insiste em não enxergar é revelado às escâncaras na pesquisa do CNMP: a sub-representação, quase ausência, de pessoas negras, sobretudo de mulheres negras. Segundo o levantamento, somente 15,8% dos membros do MP brasileiro são pessoas negras, sendo 10,4% homens negros e apenas 5,4% mulheres negras. Em contrapartida, o órgão é formado por 82% de promotoras/es e procuradoras/es brancas/os, sendo 49,2% homens brancos e 32,8%, mulheres brancas. Os dados demonstram que a sub-representação racial no âmbito do MP brasileiro é muito mais grave que a de gênero, visto que mulheres brancas somam mais do que o triplo da quantidade de homens negros na instituição.

Ou seja, a composição do MP é um retrato da pirâmide sociorracial brasileira, que mantém mulheres negras na base, seguidas de homens negros, de mulheres brancas na sequência e, enfim, de homens brancos, que ocupam (e sempre ocuparam) o topo. O mesmo perfil é constatado pelo Conselho Nacional de Justiça, na Pesquisa sobre negros e negras no Poder Judiciário, que possui apenas 12,8% de pessoas negras na magistratura, sendo que o número de magistradas negras não alcança sequer 6% do total.

Costumo dizer que ser uma mulher negra no sistema de Justiça é ser a exceção que confirma a regra de exclusão. Evoluímos muito pouco se pensarmos que mulheres negras são o maior segmento social do Brasil e somam 28% da população brasileira, mas não ocupam espaços de poder e decisão, seja nas casas legislativas, seja nos tribunais.

Os órgãos do sistema de Justiça — responsáveis pela defesa da democracia e da Constituição— precisam ser, eles próprios, democratizados.

A Convenção Interamericana contra o Racismo —que, no Brasil assumiu status de emenda constitucional (art. 5º, § 3º, CF)— determina, em seu artigo 9º, que os Estados Partes garantam que "seus sistemas políticos e jurídicos reflitam adequadamente a diversidade de suas sociedades, a fim de atender às necessidades legítimas de todos os setores da população". Garantir diversidade no sistema de Justiça é, portanto, um compromisso internacional e um dever constitucional do Estado brasileiro.

Se é preciso dizer o que se cala, então, digo que nossa Justiça não deve manter os olhos vendados, tal qual a deusa Têmis da mitologia grega! Nós precisamos de uma Justiça de olhos bem abertos e atentos a todas as desigualdades que ela precisa corrigir; que enxergue as pessoas como igualmente dignas em suas diferenças; que seja capaz de democratizar a si própria.

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