Descrição de chapéu
​Silvia Pimentel e Maria Mendes

Nada conterá a primavera

Voto de Rosa Weber pela descriminalização do aborto é esperança humanista

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

​Silvia Pimentel

Professora doutora da Faculdade de Direito da PUC-SP, foi integrante por 12 anos do Comitê sobre a Eliminação contra a Mulher (Cedaw) da ONU; autora, ao lado de Alice Bianchini, de “Feminismo(s)” (ed. Matrioska)

Maria Mendes

Advogada e mestranda em direito constitucional

No dia 22 de setembro, a presidente do Supremo Tribunal Federal, ministra Rosa Weber, relatora da ADPF 442 (arguição de descumprimento de preceito fundamental), votou a favor da descriminalização do aborto até a 12ª semana de gestação. Junto com a chegada da primavera, como a primeira flor que brota, o voto da ministra representa esperança de avanço quanto aos direitos humanos reprodutivos das mulheres brasileiras.

Em temas polêmicos e delicados, é preciso, nas argumentações, com muito cuidado, separar o joio do trigo. Para um debate qualificado, importa assumir a posição hipotética de estarmos encobertos pelo "véu da ignorância de Rawls". Especialmente em casos como este, em que a racionalidade é maculada por preconceitos, estereótipos e tabus, vale deixar de lado nossa posição pessoal e realizar a experiência imaginária de nos colocar no lugar do outro, condição de um agir ético e humanista.

Trata-se de grande desafio: ter a capacidade de viver, pensar e decidir, buscando cuidadosamente selecionar, num vasto mar de ideias e valores historicamente sedimentados, aqueles que respeitem a dignidade humana, fundamento da nossa República, que respeitem o outro, o diferente.

A ministra Rosa Weber afirmou em seu voto: "a maternidade é escolha, não obrigação coercitiva". Ou seja, deve ser vivida pelas mulheres como um direito, não como uma imposição.

Na perspectiva da interseccionalidade, criminalizar a prática do aborto consentido é amplamente discriminatório. Fere a autonomia, os direitos humanos e a liberdade fundamental de todas as mulheres: "representa forma de violência institucional contra a integridade física, psíquica e moral da mulher, colocando-a como instrumento a serviço das decisões do Estado e da sociedade, mas não suas". Pior, afeta de maneira diferente aquelas mulheres que, por sua condição existencial, se veem obrigadas a recorrer a um aborto inseguro, se arriscando entre a prisão e a morte, o que representa grave violação à equidade e à justiça. Fatores sociais, como vulnerabilidade econômica, raça, etnia, idade, origem e deficiência, afetam desproporcionalmente a vida das mulheres.

Esse entendimento coaduna-se perfeitamente com o da Convenção Cedaw/ONU, cujas disposições, no Brasil, têm caráter de norma constitucional. Destacamos seu artigo 2, que prevê a adoção de todas as medidas adequadas para modificar ou derrogar leis que constituam discriminação contra as mulheres. Também, o artigo 12, mencionado no voto da ministra relatora, que garante igualdade de condições entre homens e mulheres no acesso a serviços médicos de planejamento familiar. O Comitê Cedaw, nas RGs 33 e 35, interpretou, a partir desses artigos, que a criminalização do aborto, além de discriminatória, dependendo das circunstâncias, pode ser equiparada à tortura ou ao tratamento cruel, desumano ou degradante.

O aborto é prática recorrente no nosso país; sua criminalização não impede que ele ocorra, mas apenas que aconteça de maneira segura. Não o descriminalizar é insistir na manutenção de norma que viola os direitos humanos das mulheres, cuja eficácia é distorcida e perversa.

Que nada contenha a primavera! Que, com ela, nos desassosseguemos, inspirados e inspiradas pelo poema persa que está no hall de entrada da sede da ONU, em Nova York:

"Todos os seres humanos são membros de um só corpo
Quando um membro sofre dor
Os outros membros não podem assossegar-se
Se não sois sensível à miséria alheia
Ser humano não é nome para vós."

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.