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Silmara Conchão e Marco Akerman

O que está oculto nas faculdades de medicina?

Trote sustenta machismo, racismo, homofobia e, sobretudo, desigualdades de classe

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Silmara Conchão

Socióloga, é autora de "Faculdade de Medicina - Ame-a ou Deixe-a: Um Estudo Interseccional sobre o Trote Universitário" (Centro Universitário FMABC)

Marco Akerman

Médico sanitarista, é professor titular do Departamento de Política, Gestão e Saúde da Faculdade de Saúde Pública da USP; autor de “Bulindo com a Universidade: Um estudo sobre o Trote na Medicina” (USP)

É nosso dever contribuir com o debate motivado pelo caso dos alunos de medicina da Unisa que aparecem nus em jogo feminino, em suposta masturbação coletiva, e que teve repercussão pública tardia.

Trata-se de atitude apressada quando nos valemos de generalizações, mas temos que dizer com todas as letras que esse não foi um fato isolado. Decerto que os atores dessa realidade não são a totalidade dos estudantes, mas, sim, reforçada por muitas lideranças médicas e um grupo importante de professores que produzem seu cerco de influência.

Há mais de dez anos estudamos as relações entre estudantes de medicina e vimos que há algo no coletivo da categoria médica que reforça uma lógica de funcionamento do exercício de poder e de hierarquia exacerbada que redundam no trote violento nas escolas médicas e de demonstrações como a realizada por estudantes da Unisa.

Acadêmicos do curso de Medicina da Universidade de Santo Amaro (Unisa), em São Paulo, causaram revolta nas redes sociais neste domingo após terem sido flagrados fazendo uma “masturbação coletiva”. O episódio ocorreu durante uma partida de vôlei feminino que fazia parte da Intermed, competição esportiva entre universidades realizada de 2 a 9 deste mês.
Alunos do curso de medicina da Universidade de Santo Amaro (Unisa), em São Paulo, tiram a roupa durante evento esportivo no interior do estado - @ale_campelo no X - @ale_campelo no X

Podemos afirmar que o "currículo oculto" funciona como "processo de aculturação profissional" e coloca os estudantes fora dos ideais da medicina —e expõe esses jovens a situações de extrema vulnerabilidade.

Aqueles que concordam com a tradição, porque "sempre foi assim", vivenciam o constrangimento e a violência física no monopólio dos "veteranos" e, dessa forma, conquistam prestígio no momento de chegada a uma universidade. Quem não concorda fica à margem, mas segue, ansiosamente, buscando pertencimento. O coletivo dominante tem seu alvo em "calouros" que possam perpetuar e manter a hierarquia. Aqueles ou aquelas que se submetem a esse sistema são o alimento que mantém viva essa hierarquia.

A sociabilidade saudável é silenciada por um sistema hierárquico, mantido por um pequeno grupo organizado, que passa o bastão de mão em mão, ano a ano, e que possui o domínio do tempo, das atitudes e de vantagens, gerando por um lado obediência e, por outro, subordinação.

Os trotes, e sua máscara de brincadeira, escamoteiam o sistema permanente de exclusão e de reprodução das assimetrias sociais e mostra sua eficácia quando define e naturaliza as pessoas de "maior" e de "menor valor". É um instrumento de construção da hierarquia médica.

Os esportes competitivos ocupam um lugar central na perpetuação da cultura trotista na universidade e, por meio da regulação da Atlética, despertam o interesse não só de grande parte dos alunos, mas sobretudo de ex-alunos médicos e de técnicos contratados para treinar os "nossos atletas". Os comandantes dessa empreitada exercem significativo poder sobre a agenda desses estudantes e se organizam para dar o tom logo na recepção dos ingressantes.

Após a primeira semana de recepção, reforçam o processo de desumanização, conteúdo do "currículo oculto", e mantêm os hinos de conotação machista, racista e homofóbica que banalizam a violência do preconceito, reafirmam a sexualização exacerbada e a objetificação das mulheres.

Alunos de medicina da Universidade São Camilo abaixam as calças em jogo da Calomed, em abril de 2023 - Reprodução - Reprodução

Esse mecanismo forja um ciclo vicioso com ênfase em vencer sob a aura de se estar formando verdadeiros atletas de alto nível. Assim, frequentemente, o sistema tira alunos e alunas do foco nos estudos e nas aulas e impede que outros pratiquem esportes nas quadras por simples atitude de bem-estar —e passa a existir uma disputa entre professores e suas atividades acadêmicas versus a agenda dos treinos.

O trote é um importante instrumento de sustentação do machismo, do racismo, da homofobia e, sobretudo, das desigualdades de classe. Um desrespeito à nossa Constituição, porque naturaliza e reafirma as desigualdades de oportunidades e as injustiças sociais. Normaliza e sustenta atitudes pautadas em uma construção histórica e de valores colonialistas que o nosso país ainda não superou.

Nosso ouvido aguçado pela experiência da teoria sociológica e pela prática de sala de aula ouve esses gritos todo início de ano, quando se renovam as vozes.

Por isso, devemos manter permanentemente os debates, as rodas de conversas e problematizarmos as hierarquias e as posturas discriminatórias, numa perspectiva da consciência crítica para a emancipação e libertação de nossos estudantes.

A circunstância requer atenção redobrada aos mecanismos sociais de seleção e exclusão, como este do trote dentro das universidades, que se configura como mais uma trama que demarca as diferenças e naturaliza a desigualdade e a violência.

Aqueles que se submetem a esse sistema, consciente ou inconscientemente, alimentam e mantêm vivo o que chamamos de "o ovo da serpente".

TENDÊNCIAS / DEBATES
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