É nosso dever contribuir com o debate motivado pelo caso dos alunos de medicina da Unisa que aparecem nus em jogo feminino, em suposta masturbação coletiva, e que teve repercussão pública tardia.
Trata-se de atitude apressada quando nos valemos de generalizações, mas temos que dizer com todas as letras que esse não foi um fato isolado. Decerto que os atores dessa realidade não são a totalidade dos estudantes, mas, sim, reforçada por muitas lideranças médicas e um grupo importante de professores que produzem seu cerco de influência.
Há mais de dez anos estudamos as relações entre estudantes de medicina e vimos que há algo no coletivo da categoria médica que reforça uma lógica de funcionamento do exercício de poder e de hierarquia exacerbada que redundam no trote violento nas escolas médicas e de demonstrações como a realizada por estudantes da Unisa.
Podemos afirmar que o "currículo oculto" funciona como "processo de aculturação profissional" e coloca os estudantes fora dos ideais da medicina —e expõe esses jovens a situações de extrema vulnerabilidade.
Aqueles que concordam com a tradição, porque "sempre foi assim", vivenciam o constrangimento e a violência física no monopólio dos "veteranos" e, dessa forma, conquistam prestígio no momento de chegada a uma universidade. Quem não concorda fica à margem, mas segue, ansiosamente, buscando pertencimento. O coletivo dominante tem seu alvo em "calouros" que possam perpetuar e manter a hierarquia. Aqueles ou aquelas que se submetem a esse sistema são o alimento que mantém viva essa hierarquia.
A sociabilidade saudável é silenciada por um sistema hierárquico, mantido por um pequeno grupo organizado, que passa o bastão de mão em mão, ano a ano, e que possui o domínio do tempo, das atitudes e de vantagens, gerando por um lado obediência e, por outro, subordinação.
Os trotes, e sua máscara de brincadeira, escamoteiam o sistema permanente de exclusão e de reprodução das assimetrias sociais e mostra sua eficácia quando define e naturaliza as pessoas de "maior" e de "menor valor". É um instrumento de construção da hierarquia médica.
Os esportes competitivos ocupam um lugar central na perpetuação da cultura trotista na universidade e, por meio da regulação da Atlética, despertam o interesse não só de grande parte dos alunos, mas sobretudo de ex-alunos médicos e de técnicos contratados para treinar os "nossos atletas". Os comandantes dessa empreitada exercem significativo poder sobre a agenda desses estudantes e se organizam para dar o tom logo na recepção dos ingressantes.
Após a primeira semana de recepção, reforçam o processo de desumanização, conteúdo do "currículo oculto", e mantêm os hinos de conotação machista, racista e homofóbica que banalizam a violência do preconceito, reafirmam a sexualização exacerbada e a objetificação das mulheres.
Esse mecanismo forja um ciclo vicioso com ênfase em vencer sob a aura de se estar formando verdadeiros atletas de alto nível. Assim, frequentemente, o sistema tira alunos e alunas do foco nos estudos e nas aulas e impede que outros pratiquem esportes nas quadras por simples atitude de bem-estar —e passa a existir uma disputa entre professores e suas atividades acadêmicas versus a agenda dos treinos.
O trote é um importante instrumento de sustentação do machismo, do racismo, da homofobia e, sobretudo, das desigualdades de classe. Um desrespeito à nossa Constituição, porque naturaliza e reafirma as desigualdades de oportunidades e as injustiças sociais. Normaliza e sustenta atitudes pautadas em uma construção histórica e de valores colonialistas que o nosso país ainda não superou.
Nosso ouvido aguçado pela experiência da teoria sociológica e pela prática de sala de aula ouve esses gritos todo início de ano, quando se renovam as vozes.
Por isso, devemos manter permanentemente os debates, as rodas de conversas e problematizarmos as hierarquias e as posturas discriminatórias, numa perspectiva da consciência crítica para a emancipação e libertação de nossos estudantes.
A circunstância requer atenção redobrada aos mecanismos sociais de seleção e exclusão, como este do trote dentro das universidades, que se configura como mais uma trama que demarca as diferenças e naturaliza a desigualdade e a violência.
Aqueles que se submetem a esse sistema, consciente ou inconscientemente, alimentam e mantêm vivo o que chamamos de "o ovo da serpente".
TENDÊNCIAS / DEBATES
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