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José Eduardo Faria

A modernização do Código Civil

Textos legais precisam conciliar estabilidade e flexibilidade

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José Eduardo Faria

Professor titular do Departamento de Filosofia e Teoria Geral do Direito e decano da Faculdade de Direito da USP

Vital para disciplinar as relações privadas numa sociedade complexa como a brasileira, o Código Civil, que começou a ser escrito em 1968 e foi aprovado em 2002, entrando em vigor no ano seguinte, completou duas décadas de existência. Como essas duas décadas foram marcadas pelo advento da revolução digital, algo inimaginável para os juristas que o redigiram, o Senado nomeou uma comissão de especialistas para atualizá-lo.

O objetivo é adequá-lo aos imperativos de um mundo em mutação, que exige novas formatações normativas em matérias que vão de novos modos de constituição de família a proteção de dados, passando por contratos digitais, transferência de dados transfronteiriços, riscos de cibersegurança e um sem-número de exigências de obrigações de natureza transnacional. Por isso, a modernização do código ensejará várias discussões entre os especialista nas diferentes áreas do direito por ele abrangidas.

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No campo da sociologia jurídica, ela suscita desde já quatro indagações. A primeira diz respeito ao seu tamanho. Atualmente, ele contém mais de 2.000 artigos. Embora seja expressivo, esse número poderá aumentar ainda mais, acarretando um problema: em que medida um excesso de normas no âmbito do direito civil não corre o risco de acabar resultando em um déficit de segurança jurídica? Em outras palavras, a exemplo da inflação econômica, a inflação de artigos, parágrafos e incisos não pode acabar comprometendo a eficácia desse código?

A segunda indagação envolve a globalização dos mercados de bens, serviços e finanças nas duas primeiras décadas do século 21, que afetou o alcance do poder decisório dos Estados nacionais. Parte de sua titularidade legislativa foi deslocada para instituições em ambientes supranacionais e órgãos multilaterais, que passaram a pressionar governos para a desregulamentação de suas economias. Em que medida o surgimento de novas fontes e formas de produção do direito nesses espaços e ambientes está gerando um processo de precarização da soberania nacional? Se a resposta for positiva, qual será o grau de autonomia que a comissão nomeada pelo Senado terá para modernizar o direito privado brasileiro?

A terceira indagação envolve o descompasso entre a velocidade das transformações tecnológicas no mundo contemporâneo e a morosidade com que os Parlamentos costumam legislar em matéria de direito privado. Nesse caso, dependendo do tempo que a comissão levar para apresentar seu projeto e o Congresso vier a examiná-lo e aprová-lo, uma revisão inovadora do Código Civil não corre o risco de precisar ser submetida a um processo revisor assim que entrar em vigor?

A quarta indagação implica uma tensão entre continuidade e mudança no direito positivo. Se é certo que textos legais precisam estar abertos a uma revisão, pois do contrário estariam submetendo o poder de uma geração sobre as seguintes, isso não contradiz sua vocação de estabilidade? Ou será que as revisões de códigos e leis são necessárias para que eles possam resistir à passagem do tempo? Em princípio, os textos legais têm de conciliar estabilidade —para se manter como marco normativo— e flexibilidade, para se adequar às transformações sociais.

Evidentemente, toda abertura de um processo de revisão de um código implica riscos. Não existe democracia quando não se pode abrir um processo de revisão normativa, com resultados incertos em relação ao que vier a ser aprovado. Mesmo nos países com democracia consolidada, onde há parlamentares capazes de decidir com responsabilidade e com base na ideia que têm de interesse, não é fácil ver se o resultado final desse processo vai ao encontro das aspirações da sociedade.

Sabe-se como a revisão de um Código Civil começa, mas não como ela termina. Se isso já é difícil nos países com democracia consolidada, o que dizer então em relação a países em que o Legislativo, por mais que seja assessorado por juristas respeitados, é predominantemente integrado por fufucas e fufuquinhas?

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