VÁRIAS AUTORAS (nomes ao final do texto)
É no mínimo inquietante constatar que chegamos a (pós-)modernidade —e com ela a uma ruptura de estrutura social, de pensamento e de padrões—, mas ainda não conseguimos superar as mínimas camadas de preconceitos e machismos sobre a identidade da mulher.
Com uma carreira que marcou a história da música brasileira, Rita Lee poderia ter sido creditada das mais diversas formas a fim de homenagear seu brilhantismo, sua originalidade e ousadia, mas, por ocasião de sua morte, foi assim descrita por esta Folha: "Rita Lee, rebelde desde a infância, se deixou guiar por drogas e discos voadores".
O mesmo ocorreu com a atriz Aracy Balabanian. Uma artista completa, de reconhecido talento e com mais de 50 anos de profissão marcados por personagens de grande sucesso, foi perfilada também em sua despedida como uma mulher que fez aborto e não quis se casar nem ter filho para cuidar da carreira.
Carol Proner, que é advogada, professora na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutora em direito internacional pela Universidade Pablo de Olavide (Espanha), foi dessa forma apresentada pelo mesmo jornal: "Carol Proner, mulher de Chico Buarque, será assessora no BNDES".
A professora Lúcia França, que foi candidata a vice-governadora pelo estado de São Paulo e possui uma longa e respeitável trajetória profissional e política, nem sequer foi mencionada como uma pessoa de existência autônoma, mais uma vez pela Folha, no título da reportagem "Tabata critica Nunes e aparece com mulher de Márcio França na TV".
Os textos fazem uma referência "diminuída" a essas mulheres, em uma narrativa descuidada sobre a perspectiva de gênero, demonstrando claramente o alerta sobre a necessidade de se discutir com repórteres e editores a elaboração de protocolos de letramento de gênero que evite a depreciação e contribua com o fim do machismo.
Mulheres que desafiaram os padrões patriarcais receberam um tratamento indigno de sua história, e as que se destacam profissionalmente e politicamente de forma absolutamente autônoma foram invisibilizadas como se o valor de suas histórias estivesse atrelado a escolhas pessoais que não resumem as suas trajetórias —e isso em pleno ano de 2023.
Se entendermos que a tais ações jornalísticas acabam contribuindo para a formação da identidade pública dessas mulheres, aceitar a manutenção desse padrão de referência é desestabilizar socialmente a mulher, pois denominá-las ou invisibilizá-las dessa forma nega as transformações que elas estão produzindo no mundo através de seu agir.
Nesse sentido, é um absurdo notar que os veículos de informações existentes, que podem trazer à luz histórias de tamanho valor, se proponham a estereotipar mulheres. Se queremos que isso mude, que comecemos mostrando à sociedade o brilhantismo e valores dessas mulheres donas de seus destinos.
Parte dessa mudança é reconhecer que ainda precisamos de protocolo de letramento de gênero, em especial no jornalismo. Pois limitar as contribuições das mulheres a suas escolhas privadas é desconsiderar as emancipações identitárias.
Nessa perspectiva é preciso que o jornalismo se "alfabetize", pois é inaceitável que em 2023 mulheres sejam destaques jornalísticos através de notícias que associam tais ações a suas condições de mulher, não reconhecendo seu papel enquanto indivíduo social capaz de contribuir de forma autônoma e relevante para a sociedade. Creditar competências, referências e visões: este é o papel do jornalismo letrado!
Adriana Cecilio
Taysa Matos
Cláudia Simões
Alice David
Membras da Coalizão Nacional de Mulheres, movimento que reúne lideranças feministas progressistas de todo o Brasil
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