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João Marcos Buch

O risco da privatização dos presídios e da reescravização

Com PPPs, é dentro do cárcere que trabalhador receberá a chicotada final

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João Marcos Buch

Desembargador substituto no Tribunal de Justiça de Santa Catarina

A população carcerária do país é de cerca de 850 mil pessoas (números não qualificados), para cerca de 2/3 de vagas. Os presos são em sua maioria negros, em sua totalidade vulnerabilizados e estão em prisões violadoras dos direitos humanos, com esgotos abertos, em celas superlotadas, insegurança alimentar, carência aos cuidados da saúde, falta de água corrente e energia. O trabalho é para poucos, mesmo que gratuito e destinado à remição de pena.

Esse estado de coisas tem origens históricas. O Código Criminal de 1830 previa que a pena ao negro escravizado, condenado por um crime, deveria ser convertida em pena de morte, açoite ou galés. A justificativa era que a prisão pura e simples seria um prêmio, pois melhor que a senzala.

Depois da abolição (inconclusiva) da escravatura, o sistema penal foi usado para "conter" negros libertos que não se submetiam à continuidade da exploração de sua mão de obra. O cárcere se tornou a nova senzala.

Atualmente, um dos mais graves problemas é a superlotação. O Brasil é o terceiro país no mundo em número de presos, perdendo atrás apenas de EUA e China.

Detidos em penitenciária no Rio de Janeiro - Reprodução/ SEAP

Esse superencarceramento se iniciou em 1990, com a lei dos crimes hediondos. Depois veio a Lei Antidrogas, em 2006, estopim para a elevação da taxa de encarceramento, e, em 2019, foi a vez do atécnico pacote anticrime entrar em vigor, para acelerar de vez a violência contra os mais pobres.

A ADPF 347/DF, que decretou o estado de coisas inconstitucional do sistema, não deu conta. Nos quatro anos do governo antecessor, de 2019 a 2022, a situação do aprisionamento incrivelmente se agravou.

Penas aumentaram, direitos diminuíram, a ótica do encarceramento abraçou o viés do castigo, do Código Criminal de 1830. Em 2023, sob um governo democrático, avanços aconteceram, porque nele discursos de ódio foram substituídos por falas de conciliação e solidariedade. Mas nem tudo evoluiu como deveria.

Ainda não se vislumbrou plano nacional para superação do caos prisional, num modelo que olhe eticamente para os presos.

A desconstrução da cultura do encarceramento em massa, por meio de alternativas penais, que chegou a se projetar nos idos de 2011 a 2016, está perdida no horizonte. Pior, anunciam-se fomentos a parcerias público-privadas (PPPs), uma espécie de privatização, que capitalizará mais ainda a mão de obra prisional, em violação à dignidade da pessoa —a OIT ainda não foi acionada. O decreto 11.498, de 25/04/2023, da Presidência da República, altera o decreto 8.874, de 11/10/2016, para dispor sobre incentivo ao financiamento de projetos de infraestrutura.

O novo decreto inclui o sistema prisional. Dessa forma, a União passa investir como garantidora da infraestrutura via PPP. A vingar a proposta estaremos sob os auspícios neoliberais estadunidenses, onde as privatizações nunca se intimidaram em lançar mão de penas cada vez mais altas para fins de maior exploração do trabalho.

Por aqui, a privatização significará uma reescravização, num país altamente racista, propiciando mão de obra disponível, assim como era a mão de obra no período escravocrata.

Como será o trabalho do preso subordinado a empresas que por natureza sobrevivem do lucro? Como ficará o preso que se acidentar no trabalho? Quem deliberará sobre lançamento de falta disciplinar? Qual a consequência da falta de FGTS e Previdência, coisa que já acontece, mas que ganhará fôlego?

O trabalho será de 44 horas semanais? Haverá repouso noturno, férias, 13º? Se esses direitos já não estão na pauta hoje, imagine-se sob o comando de empresas privadas! E o impacto econômico? Nas PPPs que já existem, o estado repassa valores para as empresas. O montante fica entre R$ 1.500 e R$ 3.000 mensais por preso. Multiplique-se esse valor por centenas de milhares de presos e chegar-se-á ao real custo das PPPs.

Se o trabalhador já sofre fora do cárcere, com as PPPs é dentro dele que receberá a chicotada final. 2023 não pode ser o ano do gatilho das privatizações dos presídios e da reafirmação da escravatura!

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