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Julio Villani

O 'entre'

Presidente Lula, entranhar-se no dogma é perpetuar e expandir o conflito na Palestina

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Julio Villani

Artista plástico

Caro presidente Lula,

Levado no bolso de um amigo, fui a sua posse em 1° de janeiro deste ano. Comemorava, aliviado, o fim da era bolsonarista e da criação e supressão de provas em prol de uma narrativa que havia, entre outros efeitos nefastos, conduzido a sua injusta condenação.

Venho vendo, alarmado, as posições adotadas pela minha família —a esquerda— de maneira dogmática, repercutindo afirmações sem verificações. Pior: aceitando por vezes afirmações que vão de encontro aos fatos, porque estes não se "encaixam" na narrativa preestabelecida. Como aquelas que o levaram à prisão.

Não sei se teve a oportunidade de segurar um bebê nos braços ultimamente. Eu tive. Tenho quase vontade de dizer "infelizmente". Porque o que poderia ter sido um momento prazeroso tornou-se uma experiência excruciante. Tudo o que me passava pela cabeça era: "Como alguém pode pegar um bichinho desses e cortar-lhe a cabeça, colocá-lo num forno?".

A vida de um bebê em Israel vale o mesmo que a de outro na Faixa de Gaza. Mas equiparar as ações de um grupo formado para matar, estuprar, esquartejar, queimar vivos e sequestrar homens, mulheres e crianças —algozes capazes de abrir tranquilamente a geladeira de suas vítimas para tomar uma Coca-Cola, enquanto contemplam como torturar as próximas— às de um exército levado a combatê-las é no mínimo absurdo.

O dia 7 de outubro não é um dia a mais na história desse conflito, não é uma valorosa ação armada visando a liberação da Palestina. Sete de outubro de 2023 é o marco do momento em que a humanidade se retirou da Terra, como o mar se retira da praia. Um buraco negro que engoliu toda a matéria humana tal como a apreendemos.

Após tomar conhecimento dos detalhes desse massacre e do uso documentado que o Hamas faz da população de Gaza, dizer que Israel tem crianças como "vítimas preferenciais" é distorcer a realidade para fazê-la entrar no sapato apertado da sua narrativa. Dizer que Israel atira indiscriminadamente contra hospitais e escolas —quando dia após dia túneis e depósitos de armas são descobertos dentro destes— é negar a realidade. Mahmoud Abbas, presidente da Autoridade Palestina, acusa o Hamas de se esconder sob mesquitas e escolas; o do Brasil saberia mais e melhor? Suas críticas não estariam sendo indiscriminadas?

São milhares as vítimas palestinas. O número exato é desconhecido: ninguém são de espírito tomaria o Hamas como fonte de informação nem da hora certa, muito menos desta. Se não por outras razões, a contagem de 500 mortos em meros 17 minutos depois da explosão do hospital Al-Ahli Arab deveria deixar qualquer pessoa responsável ressabiada. Mas são, sem dúvida, tragicamente, absurdamente, milhares; só não são colaterais. Não porque sejam o objeto "preferencial" do ataque de Israel (só alguém com tendências a acusações de "blood libel" é capaz de dizê-lo), mas porque são o resultado da estratégia do grupo: vivos, servem-lhes de escudos. Mortos, servem-lhes de arma. As imagens servem para ilustrar cinicamente o discurso do dogma. Aquele que você vem adotando, sem recuo ou crítica.

A situação dos palestinos que se refugiaram no sul de Gaza é terrível; a dos que ficaram na Cidade de Gaza é pior ainda. Uma população duplamente vítima —dos ataques massivos israelenses e do cinismo de seus dirigentes. Se nos 16 anos no poder o Hamas tivesse construído 300 km de túneis, em vez dos 500 km estimados, e construído 200 abrigos com o troco, talvez tivéssemos menos vítimas palestinas. Mas, palavra do Hamas, a segurança dos civis não é da alçada deles.

Parabenizo o Itamaraty e o ministro Mauro Vieira pelos esforços alocados para a saída de nossos compatriotas de Gaza; mas até esta foi ocasião de discurso enviesado. A passagem por Rafah depende de Israel, do Egito e do Hamas. O segundo fechou a porta durante dias; o terceiro declarou que impediria a passagem dos estrangeiros enquanto não deixassem ambulâncias —carregando membros do Hamas em fuga, segundo afirmou o presidente Abbas— passar. Mas, para o bem do discurso, a culpa da delonga da saída dos nossos concidadãos tinha que ser de, e só de, Israel. (Pergunto-me também se é para o bem do discurso que sumiram dele os brasileiros assassinados pelo Hamas, e Michel Nisenbaum, nosso conterrâneo sequestrado em 7 de outubro; o site do Itamaraty desconhece o seu nome).

Se eu ainda tivesse a impressão de que a doutrina serve indiscriminadamente para proteger ideais humanistas mundo afora! Mas aí procuro sua reação ao que se passa na Síria e não acho nada.

Deparo-me com sua proximidade com a Rússia de Putin —que mata seus oponentes dentro e fora do país, persegue homossexuais, condena arbitrariamente ativistas— e os panos quentes que põe na invasão da Ucrânia. Os massacres, os estupros, as execuções, as naturalizações forçadas, o rapto de centenas de crianças ucranianas para serem russificadas; nada disso merece nem mesmo um cenho franzido?

O marido da amável senhora que convidou Janja para a manifestação "Unidos pela Paz na Palestina" emprisionou milhares de oponentes políticos nos seus 20 anos no poder —e só no ano de 2015 matou "3.100 terroristas": jornalistas, advogados, estudantes… Lembremos ainda que a Turquia proibiu o uso da língua curda (critério de limpeza étnica) e exterminou dezenas de milhares de curdos, bombardeando-os inclusive no território vizinho do Iraque, negando-lhes a independência e autodeterminação que buscam desde os anos 1920 —mas "eles" não? A palavra genocídio se escafedeu?

Sei: Erdogan é seu aliado desde 2009, na tentativa de relançar a venda de petróleo iraniano e de abrandar as sanções sobre um regime que assassina mulheres porque uma mecha de cabelo desponta do véu obrigatório, que enforcou 697 pessoas em um ano e que, incidentemente, declara três vezes por semana querer riscar Israel do mapa.

Presidente, caro Lula: isso não é mais um cisco no olho, é uma tora.

Desculpe contradizê-lo, mas diferentemente do que andou afirmando, a ONU não "criou o Estado de Israel em 1948, mas é incapaz de criar o Estado da Palestina em 2023". A ONU criou dois Estados em 1947; um lado aceitou a partilha, enquanto o outro tenta, até hoje, de maneiras diversas, negá-la. Os territórios ocupados o foram, aliás, nesse contexto.

Israel tem responsabilidade na perpetuação do problema palestino? Sem dúvida, enorme.

Mas os Estados árabes em geral e a liderança palestina em particular também, e não menor.

Enquanto o dedo for apontado só para um lado, essa carroça não anda. Enquanto pregarem que a Palestina deve se estender do rio ao mar; enquanto este não for um problema de "partilha", mas de "tudo ou nada", enquanto tantos não aceitarem a existência do Estado judeu (ao lado dos 57 Estados muçulmanos, incluindo um em que nós dois, "impuros", não podemos pisar, outro que chicoteia chargistas e outro ainda que desmembra jornalista em sua representação diplomática), essa carroça não anda.

O sofrimento e a destruição em Gaza são insuportáveis, e as reações emocionadas plenamente compreensíveis. Mas isso não é razão para escolher ignorar os fatos que não servem a sopa ao discurso.

Sei que está sendo aplaudido por muitos —inclusive diversos de meus amigos, que andam praticando uma falta de nuance que me dá a sensação de viver uma era de "adoração do líder máximo" ("mito"?!).

Como todos tem opinião sobre a questão —às vezes com, outras sem nenhuma informação— me permito dar a minha: para ter a atuação do grande estadista pelo qual votamos, me parece ser necessário, mais do que nunca, tirar a tora do olho e fazer o esforço de enxergar a situação fora da zona de conforto do dogma; unir comunidades, em vez de promover afastamentos por discursos impregnados de ódio, como os que temos ouvido.

O PCO pede "o fim do Estado de Israel", clama por palmas para os assassinos do Hamas; no PSOL, quem não adota "a linha" é isolado como um pestiferado, sem debate possível. A esquerda enlouqueceu?

Turquia, Irã, Hamas, Hezbollah. Todos ferventes (e sanguinários) teocratas; são esses os nossos amigos?

Os aliados dos EUA merecem tudo o que se lhes caia em cima, e os que se opõem a eles são nossos aliados, o que quer que façam? Voltamos à velha síndrome de negação dos gulags, com o agravante de beneficiar regimes retrógrados?

A esquerda israelense precisa de apoio internacional; tem recebido escárnio. E a oposição palestina ao Hamas, que precisa de tanto e mais apoio, tem visto esse grupo islâmico, nascido das entranhas dos Irmãos muçulmanos do Egito, ser prestigiado e representado sob os traços românticos de um Che, o que certamente não é.

Presidente, caro Lula: somos dois —somos tantos— a querer ver o Estado palestino nascer, que precisamos todos aprender a medir a distância entre as diferentes posições, sabendo que essa extensão —o "entre"— é tanto o que aparta quanto o que pode ser atravessado, para aproximar.

Se nós, distantes do conflito, não conseguimos controlar paixões para ouvir razões, abandonar preconceitos para ver fatos, como exigir que eles, lá, possam traçar fronteiras na concretude da poeira do chão?

Há de existir um compromisso com o diálogo, com a inclusão e o respeito de ideias divergentes mas não necessariamente irreconciliáveis; é a única base para a busca de soluções.

Há de existir uma solidariedade na tristeza e no trabalho de luto. A paz nesta região do planeta será construída pelos que choram genuinamente os seus mortos (e não os que os consideram "shaheed", mártires, escudo humano…).

Entranhar-se no dogma é perpetuar —e expandir— o conflito.

Um abraço fraterno —e muito inquieto com o andar da "nossa" carruagem.

Julio Villani

TENDÊNCIAS / DEBATES
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