Descrição de chapéu
Jorge Claudio Ribeiro

De tão humana, uma criança divina

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Divindades são concebidas no coração da gente, são o nosso espelho

Jorge Claudio Ribeiro

Escritor, professor, editor e jornalista; mestre em educação e teologia, doutor em antropologia e livre-docente em ciência da religião pela PUC-SP

Como acontece há exatos oito séculos, também neste ano os cristãos montam presépios, tendo ao centro o recém-nascido numa gruta em Belém, cidade da atual Cisjordânia, na Palestina. Broto de família judia, esse menino ressona num cocho onde se alimentam bois, cavalos e o jumentinho que transportou sua mãe. Ao redor, anjos, pastores e reis magos. Essas figuras enternecem multidão de adeptos, e não adeptos, de tantas crenças.

Mas há quem seja atraído por ambientes espetaculosos, que prometem aquecer os corações, ainda que por breve tempo. Em turbilhão, luzes, canções, comidas típicas, aromas, árvores piscantes, Papais Noéis, gnomos, renas e presentes nos teletransportam até a galáxia shopping ou a constelação 25 de Março. Com sorte, verte-se furtiva lágrima.

Tela com a Virgem Maria e o Menino Jesus, de Sandro Botticelli - Reprodução

No fundo dessa miscelânea de sensações, repousa (atenção!) uma criança que, de tão humana, é divina. Desde antes dos tempos, mitologias narram com esmero nascimentos de divindades. O sublime poema "Teogonia" relata que um dos primeiros deuses a eclodir foi Eros —força cósmica de atração, desejo que abrasa e fecunda, ou o amor que faz os seres emergirem do escuro Caos até a luz.

Entretanto, neste momento atual, é especialmente árduo enternecer-nos com presépios e teogonias. Somos soterrados por escombros fumegantes em Gaza, na Ucrânia, no kibutz de Be’eri, na Síria, na África e alhures; fervemos em ondas de calor; pandemias nos abatem; garimpamos nossa sobrevivência em lixões Brasil afora. Todos os dias, brutalidade e barbárie esbofeteiam nossa humanidade.

A história parece empurrar-nos para o velório do sagrado. Ao visitar Auschwitz, e acabrunhado pelo horror, aquele pontífice católico proferiu paradoxal queixa: "Por que, Deus, o senhor permaneceu em silêncio? Onde estava Deus naqueles dias? Como pôde permitir esse massacre sem fim, esse triunfo do mal?".
Apesar das tragédias, contudo, teimamos em celebrar o nascimento de deus, deusa ou seus plurais. Por quê?

Primeiro, porque ao fazê-lo tomamos consciência de quem somos, fomos e poderemos ser. De um ponto de vista poético e antropológico, divindades são concebidas no coração humano, são nosso espelho.

Nossas alegrias e esperanças, tristezas e angústias, são a principal matéria-prima das representações sacras ao longo das eras. Mais que cultuar imagens de deuses, maravilham-nos a gestação e incessante transformação deles; mais que contemplar milagres, interessa-nos conhecer sua véspera.

Em segundo lugar, experimentamos que festejar a vinda de Deus alimenta nossa esperança. Numerosas histórias apontam essa virtude como sendo nossa essência (nosso DNA, diríamos). O mito de Pandora, a primeira mulher, relata que, ao presenteá-la com misteriosa caixa, Zeus ordena que não a abra. Mas Pandora desobedece, e todo tipo de males se espalha pelo mundo. Rapidamente, ela fecha a caixa, a tempo de aí reter apenas a esperança.

Sem esperançar, nos estranhamos e vagamos de mãos pensas pela vida. A esperança é um útero espiritual que gesta tanto a nós mesmos como aos deuses, que dá à luz e abraça, como uma manjedoura.

Que neste místico solstício, prenhe de seres celestiais, possamos amamentar nossa esperança, estreitando fraternalmente as mãos uns dos outros, e assim renovarmos a face da Terra e construirmos a paz. Embora mutilados no corpo e na alma, embora cambaleando, consigamos equilibrar-nos no fio da existência e saltar de esperança em esperança.

Eis a dádiva que, no multissecular presépio, o aniversariante de hoje nos oferece.

Feliz Natal para você!

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