Descrição de chapéu
Cassiano Luz

Evangélicos e tragédias climáticas

Estaríamos dispostos a mensurar o gasto das igrejas com ações humanitárias?

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Cassiano Luz

Teólogo e antropólogo, é diretor-executivo da Aliança Cristã Evangélica Brasileira e da Sepal (Servindo aos Pastores e Líderes); foi presidente da Associação de Missões Transculturais Brasileiras e diretor de operações da Visão Mundial Brasil

"Sons de chuva" é um aplicativo que eu costumava utilizar como recurso contra a insônia, que sofro desde a infância. Após dois anos atuando em catástrofes causadas por fortes temporais em seis estados do país, confesso que o barulho do aguaceiro batendo no telhado perdeu seu efeito relaxante.

Custo a dormir nas noites chuvosas, mesmo seguro de que não serei surpreendido na madrugada pela água cobrindo a cama dos meus filhos —ou, pior, levando meu teto e paredes morro abaixo. No conforto da minha cama, sou assaltado por imagens caóticas, rostos angustiados e choros de crianças que brotam ao som das primeiras gotas, ameaçando: "Pode acontecer de novo". Infelizmente, tudo indica que sim. Provavelmente, vai acontecer de novo.

Danos causados pela chuva em Roca Sales, cidade do Rio Grande do Sul - Diego Vara/Reuters - REUTERS

Os eventos climáticos extremos vêm aumentando exponencialmente em frequência, intensidade e gravidade. A Confederação Nacional dos Municípios informa que quase 6 milhões de brasileiros foram diretamente afetados por eles em 2023. Segundo o Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, mais de 8 milhões de pessoas no país vivem em áreas de risco.

Escrevo estas linhas sob o impacto das visitas que fizemos às famílias atingidas pelas chuvas na Baixada Fluminense. Orando e refletindo sobre possíveis estratégias para a "fase 2" da emergência, reposição de bens e reconstrução, sou surpreendido por uma série de publicações e comentários cujos conteúdos me remetem aos motivos que nos levaram à criação do "Aliança pela Vida", um programa de respostas em desastres e emergências humanas, fundamentado na ampla presença das igrejas e organizações baseadas na fé em todo o território nacional.

Refiro-me à compreensão de que as pautas ideológicas são divergentes em sua natureza, portanto potenciais adversárias do propósito principal de existência da aliança evangélica, que é promover a unidade, enquanto a cooperação em torno de causas comuns é convergente, deixando em segundo plano as diferenças. Exceto em contextos missionários mais complexos, nunca vi tanta diversidade de igrejas e denominações evangélicas servindo juntas como nas ações promovidas pelo "Aliança pela Vida".

Em tempo: parece-me que a prática da nossa unidade como igreja de Jesus é a melhor estratégia para cumprimento da missão, na perspectiva do próprio Cristo, que orou: "Pai, que eles sejam um, assim como nós somos um, para que o mundo creia que tu me enviaste" (João 17:21).

Nosso propósito, porém, não é militar pela supressão dos debates. Ao contrário, entendemos que esses movimentos dialéticos são importantes para o nosso desenvolvimento e da nossa sociedade. Seguem, portanto, algumas questões para nossa ponderação.

Por que algumas tragédias geram muito mais respostas e engajamento dos evangélicos do que outras? Quais fatores determinam se uma pessoa ou igreja responderá aos apelos de sofrimento agudo das vítimas de tragédias muito semelhantes, mas em contextos distintos? Até que ponto nós, evangélicos, estamos dispostos a debruçar-nos sobre a temática das mudanças climáticas que estariam sendo causadas pela ação humana e seriam as principais impulsionadoras desses desastres naturais, não apenas para fazer prevalecer nossas interpretações mas para buscar por respostas de socorro mais efetivas? Estaríamos dispostos a medir qual percentual de receitas das nossas igrejas é gasto em ações de socorro humanitário em relação a despesas de outras naturezas?

As perguntas me vêm como avalanche, como aquela de lama e pedras que varreu o Morro da Oficina, matando a maior parte das 235 pessoas que perderam suas vidas nas chuvas de Petrópolis (RJ), em 2022. Independentemente de qual matriz ideológica motivou as narrativas posteriores à tragédia, ela aconteceu. Nós estávamos lá. Juntos. Servindo.

* Nos últimos dois anos, o programa Aliança pela Vida beneficiou diretamente mais de 50 mil pessoas em oito tragédias humanitárias, contando com mais de 350 voluntários cadastrados em todo o Brasil

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.