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Ronaldo Laranjeira

A pandemia negligenciada do álcool

'Aprecie com moderação' é vago, subjetivo e de difícil compreensão

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Ronaldo Laranjeira

Médico psiquiatra especialista em álcool e drogas, é professor titular de psiquiatria da Escola Paulista de Medicina/Unifesp e presidente da SPDM (Associação Paulista para o Desenvolvimento da Medicina)

Em janeiro último, a OMS (Organização Mundial da Saúde) divulgou relatório que aponta redução de 35% no consumo de tabaco no Brasil desde 2010. Portanto, segundo a entidade, o país se torna um dos líderes mundiais na diminuição do número de fumantes.

Uma boa notícia, sem dúvida. Mas, infelizmente, o mesmo não se pode dizer em relação ao uso de álcool, uma substância psicoativa perigosa e responsável por 4% de todas as mortes no mundo.

Homem branco segura um copo contendo bebida alcoólica.
SUS oferece tratamento gratuito para alcoólicos, mas há lacunas no nível ambulatorial e de internações para os casos mais graves - Fiocruz Imagens

Dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) apontam que, no período de 2013 a 2019, a proporção de brasileiros que ingerem bebidas alcoólicas ao menos uma vez por semana cresceu de 23,9% para 26,4%, puxada principalmente pela alta no consumo entre a população do sexo feminino —de 12,9% para 17%. Além disso, a ingestão per capita de álcool no Brasil é cerca de 30% superior à média mundial.

Neste domingo (18), Dia Nacional de Combate ao Alcoolismo, cumpre lembrar que a bebida segue destruindo vidas, ano após ano. Não houve, no Brasil, campanhas relevantes visando à redução da ingestão de bebidas alcoólicas, e a restrição da propaganda foi tímida, diferentemente do que ocorreu em relação ao cigarro.

O "aprecie com moderação", mensagem comum em peças publicitárias e nos rótulos de bebidas, é um termo tão vago quanto subjetivo —e de difícil compreensão. Na verdade, já é consenso na própria OMS, a partir da revisão da literatura científica, que não existem níveis seguros de consumo de álcool para a saúde dos cidadãos. Doenças hepáticas, cardiovasculares e gastrointestinais, danos cerebrais e imunológicos, alguns tipos de câncer, pancreatite e outros distúrbios, inclusive psiquiátricos, estão diretamente associados ao uso de bebidas.

A violência doméstica, no trânsito, nos bares e em eventos festivos são outras consequências deletérias e graves do consumo excessivo de bebidas alcoólicas, além da instalação da dependência química, doença crônica, progressiva, degenerativa e incurável —embora tratável.

A doença, ainda fortemente estigmatizada, não atinge só o usuário de álcool, mas impacta diretamente a vida de cônjuges e familiares, que sofrem junto ou, não raro, se afastam do dependente.

São questões conhecidas e igualmente negligenciadas. Não há políticas públicas de prevenção eficazes e permanentes, tampouco restrições à produção, ao comércio, à propaganda e ao consumo de bebidas alcoólicas em locais e eventos públicos. O álcool está à disposição em 1,2 milhão de pontos de venda por todo o país, segundo estimativa do Sindicerv (Sindicato Nacional da Indústria da Cerveja).

Além de uma legislação nacional mais contundente, é desejável que estados e municípios também tratem do tema como questão de saúde pública e de combate à violência. O exemplo de Diadema, na região metropolitana de São Paulo, é emblemático. A lei municipal de 2002 que obrigou os bares e restaurantes a fecharem às 23h contribuiu para a redução de mais de 80% na taxa de homicídios na cidade.

iste uma rede estruturada de cuidados aos dependentes de álcool, e os Caps (Centros de Atenção Psicossocial) não dão conta da alta demanda.

Há cerca de cinco anos, o governo brasileiro pouco fez para impedir a descontinuidade da produção nacional do Dissulfiram, um medicamento barato e altamente eficaz no combate ao etilismo crônico, com forte poder de ação antiabuso. Milhares de pacientes ficaram desassistidos e muitos recaíram no consumo abusivo de álcool.

Há décadas a sociedade civil se organizou para socorrer e auxiliar os dependentes de álcool, por meio de instituições como Alcoólicos Anônimos, cujo programa é largamente reconhecido por suas consideráveis taxas de sucesso. Já passou da hora de o poder público envidar esforços para enfrentar, com a necessária seriedade, a pandemia negligenciada de álcool no nosso país.

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