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Thais Mauad e Ari Araujo

Futuro da saúde pública dependerá da resiliência climática

Crise poderá exacerbar as já existentes iniquidades no acesso aos serviços

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Thais Mauad

Professora associada da Faculdade de Medicina da USP, ministra a disciplina Saúde e Mudanças Climáticas

Ari Araujo

Médico e doutor pela Faculdade de Medicina da USP, é membro do Programa de Jovens Líderes da Academia Nacional de Medicina

Em uma frase atribuída ao antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, e transformada em verso por Caetano Veloso, o paradoxo do modelo de desenvolvimento brasileiro se expressa nas contradições entre intenção e gesto: "Aqui tudo parece que era ainda construção e já é ruína".

Quase 90 anos após a primeira visita ao Brasil de um dos mais importantes pensadores do século 20, o aforismo ecoa em novos contextos e ameaças de ruínas. Um hospital recentemente evacuado pelo risco de desabamento próximo a uma mina em Maceió. Inundações em hospitais das cidades do Rio de Janeiro e Porto Alegre, no lastro dos temporais que assolaram o país nas últimas semanas. Cenários de tragédia e destruição que trouxeram à tona a vulnerabilidade da nossa infraestrutura de saúde diante de desastres ambientais e eventos climáticos extremos.

Inundação no Hospital Ronaldo Gazolla após fortes chuvas no Rio de Janeiro - Bruno Kaiuca/AFP - AFP

Apesar de os efeitos dessa crise serem evidentes em diversas partes do mundo, distintas regiões são impactadas conforme seus níveis de vulnerabilidade e adaptabilidade. Dados da Organização Pan-Americana da Saúde alertam que mais da metade dos 18 mil hospitais da América Latina estão atualmente localizados em áreas de risco físico para desastres naturais, como inundações, furacões e terremotos. Outro relatório, apresentado ano passado na conferência do clima da ONU (COP-28, em Dubai), prevê que mais de 16 mil hospitais em todo o mundo estarão em risco de fechamento por eventos meteorológicos extremos até o final deste século se estratégias de prevenção e adaptação não forem implementadas.

O desafio da adaptação se associa ainda ao da mitigação, uma vez que a indústria da saúde e sua longa cadeia de suprimentos são responsáveis por parcela significativa das emissões globais de gases de efeito estufa. Nesse contexto, sistemas de saúde que adotam estratégias de resiliência ao clima —como mudanças operacionais e de governança, investimentos em inovação tecnológica e aumento da eficiência energética (sobretudo com fontes renováveis)— contribuem efetivamente para a mitigação das mudanças climáticas, e vice-versa. Os custos da adaptação climática são indubitavelmente elevados, porém substancialmente inferiores às projeções de despesas futuras para reparação de desastres ambientais se nada for feito.

Voltando ao Brasil, reportagem recente desta Folha revelou que apenas 3% dos mais de R$1 bilhão gastos pelo governo federal em 2023 com a gestão de riscos e desastres naturais foi direcionado para a prevenção e adaptação de novos eventos, na mesma página em que a morte de duas mulheres (mãe e filha) arrastadas pelas chuvas no interior paulista é noticiada. Naquela mesma semana, em janeiro, o governo federal anunciou investimentos de R$ 30 bilhões no novo Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) da Saúde, sem detalhar —até o momento— como o plano de expansão do setor incluirá ações de mitigação e adaptação aos impactos do clima.

É sabido que as mudanças climáticas interferem em vários determinantes estruturais, sociais e econômicos da saúde, dentre os quais a segurança alimentar e a poluição, e poderão aumentar os gastos com o setor globalmente. Mais do que isso, há uma preocupação crescente de que a crise climática atual poderá exacerbar as já existentes iniquidades no acesso aos serviços de saúde, sobretudo em países em desenvolvimento. Tais impactos serão particularmente mais sentidos por grupos socialmente vulneráveis (como a população em situação de rua) ou com acesso limitado aos sistemas de saúde (como indígenas, quilombolas e ribeirinhos).

A construção de um sistema de saúde sustentável e resiliente exigirá, portanto, investimentos estruturais e políticas públicas de longo prazo, muito além do que a resposta imediata às tragédias a que temos assistido. Um sistema que deverá ser erguido sobre os pilares do desenvolvimento humano, socialmente inclusivo e economicamente sustentável. Unindo intenção e gesto, é nosso dever como sociedade superarmos as ruínas do passado e construirmos esse novo sistema sobre novas e maiores bases no futuro.

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