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Arnaldo Bloch

Lula ofende judeus que votaram nele

Um sentimento corre no coração de boa parte de nós: virar a página em 2026

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Arnaldo Bloch

Jornalista, escritor, tradutor e roteirista, é autor de “Os irmãos Karamabloch” (Companhia das Letras)

A fala do presidente Lula na Etiópia, comparando os ataques de Israel em Gaza ao Holocausto, além da ignorância que carrega em seu conteúdo e em sua formulação, ofende não só os judeus de todas as tendências (em especial as vítimas ainda vivas e os familiares e descendentes de mortos nos campos de concentração nazistas) mas, também, os judeus progressistas ou mesmo os conservadores pragmáticos, que votaram no petista em 2022, entre os quais eu me incluo.

Teria votado de novo, pois sei que um país com Jair Bolsonaro (PL) é um país de ruptura institucional, de desconstrução das garantias do cidadão, de estímulo às armas. Um país necrófilo, miliciano, desdenhoso da natureza e dos povos nativos, de caráter golpista, de negacionismo da ciência. Um país mitômano, perverso, homofóbico, sexista, paranoico, adepto da perseguição às minorias, da estética e do ideário nazifascistas. E por aí vamos. Sob Lula (como seria sob outros governantes de perfil moderado), o Brasil voltou aos trilhos como um país funcional, está crescendo, está avançando e refundando aquilo que Bolsonaro destruiu.

O presidente Lula discursa em cúpula da União Africana, na Etiópia - Ricardo Stuckert - 17.fev.24/Divulgação Presidência da República via AFP - AFP

Isso torna ainda mais doloroso ver Lula cair na esparrela de estabelecer paralelos entre a campanha militar em Gaza e o colosso nazista, coisa que críticos severos, já escaldados, de Israel não ousam fazer. O Holocausto foi uma campanha de extermínio dos judeus (nomeada "solução final") com a utilização de uma tecnologia da morte de contornos industriais, sem que houvesse qualquer tipo de conflito prévio.

Os 6 milhões que pereceram (quase metade da população judia à época, vivendo na diáspora) eram cidadãos alemães ou de outras nacionalidades que amavam seus países e, de um dia para outro, passaram a ser hostilizados, marginalizados, depauperados, confinados e, por fim, deportados e assassinados em câmeras de gás. As motivações tinham origem no antissemitismo sistêmico da Europa imemorial, levado ao paroxismo pela mente doentia de Hitler e seus ideais de pureza racial calcados numa falsa correlação eugênica com a Antiguidade clássica. E na ideia de uma degenerescência associada aos judeus, que data dos primeiros séculos da Era Comum, passa pela Inquisição, pelos pogroms no Leste Europeu e por processos como o caso Dreyfus. Ideia cravada, até hoje, no inconsciente coletivo do Velho Continente.

A campanha de Israel em Gaza, por outro lado, foi motivada por um ataque terrorista de contornos monstruosos, com estupros e tortura, teleguiado pelo Irã e perpetrado pela facção que governa a região com mão de ferro —e não reconhece o Estado de Israel nem a Autoridade Palestina (AP). O ataque ocorreu, não por acaso, no momento em que se davam os últimos passos rumo a um acordo entre o Estado judeu e a Arábia Saudita, arqui-inimiga do regime iraniano. Isso num contexto em que o Hamas (que prega, em seus estatutos, a morte de todos os judeus do mundo) expõe sua população civil ao imiscuir o aparelho de guerra nas estruturas urbanas não militares, incluindo hospitais.

Pode-se criticar a ação de Israel em vários aspectos. Reivindicar que não se execute a ação final em Rafa para evitar um agravamento da crise humanitária e o próprio risco de incorrer num desastre sem volta. Ser a favor do plano que está sendo proposto pelos EUA e por países árabes: num primeiro momento, cessar-fogo em troca de reféns e, num segundo, com a aniquilação política do Hamas, uma construção geopolítica em que se crie um Estado palestino comandado pela AP, entrando os vizinhos árabes, junto com Israel, como parceiros nas garantias de segurança sob supervisão de organismos internacionais.

Pode-se criticar Netanyahu e a coalizão que o mantém no poder, por seu perfil radical, pela negligência com a segurança e por sua trajetória corrupta. Ou por governar mirando somente o interesse pessoal, com o objetivo de se livrar dos processos que correm contra ele.

Tudo isso pode ser feito sem que se ofenda a consciência de todo um povo e da própria humanidade, como Lula se esforça em fazer. Talvez sem se dar conta da crueldade que profere, o que ainda piora a situação, mas também lhe dá a chance de se corrigir. Por ora, um sentimento corre no coração da maior parte dos judeus brasileiros que lhe deram o voto: o desejo e a esperança de que seja possível, em 2026, virar a página.

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