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Sem anistia para os crimes da pandemia

Luto com dignidade exige a devida responsabilização

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Quais as consequências de um presidente da República, durante uma pandemia, comparecer a aglomerações e arrancar a máscara de proteção do rosto de uma criança de colo? Qual o destino de um ministro da Saúde cuja política de resposta à Covid-19 inclui um aplicativo que recomenda medicamentos comprovadamente ineficazes? Qual a responsabilização devida aos integrantes de um governo que atrasam a aquisição de vacinas enquanto estimulam o descumprimento de medidas sanitárias preventivas?

Ao menos 14 petições criminais e 2 inquéritos relativos a crimes por essas e outras condutas praticadas por autoridades do governo Bolsonaro durante a pandemia continuam em andamento no Supremo Tribunal Federal. Contudo, a resposta para quem espera alguma responsabilização pelas violações contra a saúde pública cometidas durante a emergência sanitária corre o risco de ser frustrada em razão da herança deixada pela gestão anterior da Procuradoria-Geral da República.

Em 2021, o então presidente Jair Bolsonaro retira a mascara de uma criança, contrariando os protocolos sanitários, enquanto discursava em evento - @Barreto269 no Twitter

É o que demonstra novo estudo do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário da USP em parceria com a Conectas Direitos Humanos, que sistematiza dados de levantamento realizado em dezembro de 2023. Ao analisar a atuação da PGR em 58 processos de responsabilização criminal por crimes relativos à pandemia, o estudo constatou que, sob a liderança de Augusto Aras e Lindôra Araújo, o órgão pediu o arquivamento de 79% dos casos. Todas as dez petições criminais originadas a partir das apurações da CPI da Covid receberam pedido de arquivamento por parte da PGR.

Os perigos da impunidade, caso o STF decida acolher os pedidos de arquivamento da PGR, já podem ser sentidos. A carta branca para organizar aglomerações, espalhar desinformação massiva, incitar a invasão de hospitais e tirar máscaras de crianças, entre tantas outras condutas de risco, sem qualquer consequência jurídica, parece encorajar governadores que, contrariando o Estatuto da Criança e do Adolescente, desincentivam a imunização de crianças e adolescentes ao dispensarem a carteira de vacinação para a matrícula escolar. O mesmo pode ser dito sobre gestores públicos que discricionariamente não utilizam todos os recursos disponibilizados para a prevenção da dengue em meio ao surto da doença.

Ainda de acordo com o estudo, os argumentos apresentados pela PGR nos pedidos de arquivamento tornam praticamente impossível punir crimes contra a saúde pública em futuras epidemias, atingindo duramente o arcabouço legal sanitário do Brasil. Observou-se que em vez de se alinhar ao conteúdo da Constituição, que estabelece o dever de fiscalizar eventuais condutas criminosas cometidas por autoridades do Executivo Federal, a PGR, por meio de interpretações jurídicas bastante questionáveis, chancelou muitas das condutas irresponsáveis adotadas na gestão da pandemia, afrontando a memória das 700 mil famílias de vitimados pelo coronavírus.

O mapeamento realizado destaca argumentos utilizados pela PGR contrários às evidências científicas e às medidas de contenção da doença preconizadas pela Organização Mundial da Saúde, como o uso de máscaras. Os argumentos apresentados também entendem não ter havido desinformação por parte do governo mesmo que Jair Bolsonaro tenha associado a vacina contra a Covid à Aids. Ou, ainda, tratam como natural a insistência de membros do governo em utilizar tratamentos ineficazes, como o uso de hidroxicloroquina, já que esses agentes públicos teriam uma crença legítima na eficácia de seu uso —embora o remédio já fosse considerado comprovadamente ineficaz, de acordo com pesquisa global reconhecida pela OMS.

A opção por indulgenciar quem optou deliberadamente pelo vilipêndio da saúde pública brasileira, quando tinha o dever legal de preservá-la, compromete não só o direito à justa responsabilização pelas violações do passado mas também a demanda pela não repetição.

O tempo necessário para que alguém se recupere, depois de perder um ente querido que poderia ter sido salvo, é incalculável. Mas a responsabilização por esses atos é o primeiro passo para que a sociedade brasileira atravesse, com dignidade, o luto coletivo causado pela Covid-19 apoiada na memória, verdade e justiça em relação aos que se foram.

Deisy Ventura
Professora titular da Faculdade de Saúde Pública da USP

Fernando Aith
Diretor-geral do Centro de Pesquisas em Direito Sanitário da USP

Bianca Villas Bôas
Advogada

Cristiane Pereira
Doutoranda do Instituto de Relações Internacionais da USP

Juliana Pontes
Advogada

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