A tragédia do Rio Grande do Sul demanda apoio federal irrestrito para recuperar o estado. Foi correta a visita de Lula a locais atingidos. É assim que agem líderes políticos em situações de calamidade. Deles se espera comprometimento, conforto e solidariedade com os que perderam pertences e entes queridos.
Ao mesmo tempo, cabe realçar outra tragédia, a das finanças federais. Há que perceber o risco que a periclitante situação acarreta para a estabilidade macroeconômica e para o potencial de crescimento do Brasil. Diferentemente de outros países que viveram dramas semelhantes, não temos como fazer escolhas orçamentárias e de prioridades. Isso ocorreu, por exemplo, na ação do governo federal americano diante dos efeitos do furacão Katrina (2005), que causou enormes danos à região metropolitana de Nova Orleans.
No Brasil, as opções ocorreram no passado, de forma eterna. Nos Estados Unidos e em outros países dispõe-se de flexibilidade para cancelar dotações orçamentárias e priorizar as áreas atingidas, mediante auxílio a pessoas prejudicadas e suprimento de recursos para recuperar a infraestrutura danificada por incêndios, terremotos ou inundações. Aqui, quando se consideram os investimentos —que Lula proibiu de contingenciar—, os gastos obrigatórios federais —aqueles que não podem sofrer cortes— atingirão, em 2024, 98% dos gastos primários, isto é, descontados os encargos financeiros da dívida pública.
Na origem, estão a Constituição de 1988 e os aumentos reais do salário mínimo, fontes dos generosos benefícios previdenciários. Permitiu-se, depois, a formação de uma casta de servidores, seus supersalários e ganhos sem incidência do Imposto de Renda. Transferiu-se, adicionalmente aos níveis preexistentes, 20% da arrecadação do IPI e do IR em favor de estados e municípios, sem transferir responsabilidades. Em dez anos, a recente reinstituição da política do mínimo eliminará os ganhos da reforma previdenciária de 2019.
A nova Carta ampliou, de 13% para 18%, a vinculação de impostos a despesas com educação. Hoje, em termos proporcionais, o Brasil despende na área uma vez e meia o que gasta a China e cerca de 10% mais do que os países ricos da OCDE. Mesmo assim, sua qualidade é lamentável e nos coloca muito atrás de nossos pares no mundo emergente, de acordo com avaliações do Pisa, um programa da OCDE. A mesma política foi estendida à saúde, na qual é obrigatório despender 15% da receita corrente líquida anual da União.
A rigidez do gasto público, sem paralelo no mundo, inviabilizou o teto de gastos, que somente seria factível com a redução drástica dos gastos obrigatórios, o que não ocorreu. Esse será o destino do novo arcabouço fiscal.
A tragédia do Rio Grande do Sul tende a desnudar de vez essa situação. Apenas o custo de reconstrução da infraestrutura exigirá gastos de R$ 92 bilhões, conforme estimativa do economista Cláudio Frischtak. A Secretaria do Tesouro Nacional estimou, no relatório fiscal do primeiro bimestre, que em 2032 não haverá margem para gastos discricionários (os que não são obrigatórios). É possível que isso aconteça muito antes. Será necessário aumentar a carga tributária ou a dívida pública, o que parece inviável.
Pelo arcabouço fiscal, serão acionados gatilhos para conter despesas se os gastos primários atingirem 95% do total. Ocorre que eles tratam essencialmente de adiar despesas, a maior parte de pessoal (suspender novas contratações, promoções, reestruturação e outros itens). Isso não resolve. Será impossível, por exemplo, congelar os salários para sempre. Os desembolsos tendem a voltar aos seus níveis anteriores, no que chamo de "efeito mola".
A menos que sejamos capazes de enfrentar a grave rigidez orçamentária, o país tem um encontro marcado com uma grande crise financeira. Dela advirão alta da inflação e dos juros, corrosão dos salários e do consumo, e redução do potencial de crescimento do país.
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