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Fulvio Alexandre Scorza

O impacto do racismo no cérebro

Ao longo da vida, prática criminosa também impõe à vítima alterações na saúde física e mental

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Fulvio Alexandre Scorza

Neurocientista, é professor do Departamento de Neurologia e Neurocirurgia da Escola Paulista de Medicina da Unifesp; consultor científico da Unidade de Neurocirurgia da Beneficência Portuguesa de São Paulo

O cérebro humano é um órgão complexo e altamente eficiente. Formado por 86 bilhões de neurônios e pesando cerca de 1,5 kg, o cérebro está em constante transformação ao longo da vida, tornando-se um órgão flexível e adaptável.

Essa neuroplasticidade, habilidade do cérebro adulto em alterar sua anatomia em resposta a estímulos externos e internos, permite que os neurônios se reorganizem e formem novas células (neurogênese). A adição de novos neurônios, em uma rede neuronal já existente, é um dos maiores exemplos de neuroplasticidade. Realmente, os estímulos do ambiente influenciam diretamente na formação dos novos neurônios no cérebro adulto.

Imagem do cérebro feito por scanner de ressonância magnética na França - Alain Jocard/AFP - AFP

Por exemplo, a neurogênese é regulada positivamente pela atividade física, aprendizagem e ambiente enriquecido e negativamente pelo estresse e por diversas condições neuropsiquiátricas. Seguindo esse raciocínio, podemos mencionar que os efeitos perniciosos da discriminação racial e do racismo estrutural impactam negativamente na neuroplasticidade, pois estão direta e indiretamente associados ao declínio das funções cerebrais.

Dessa forma, o racismo pode ser considerado um determinante social de doença? Certamente sim.

De fato, o racismo e a discriminação racial estão relacionados com o aumento da ocorrência de diabetes, hipertensão, hipercolesterolemia (colesterol alto), consumo de álcool, depressão e transtorno do estresse pós-traumático (TEPT). Do ponto de vista cerebral, a diabetes e a hiperglicemia induzem efeitos deletérios na morfologia e funções cerebrais, como diminuição da neurogênese, dos volumes cerebrais (atrofia cerebral) e aumento da incidência de acidente vascular cerebral (AVC). A hipertensão está relacionada a uma diminuição da neurogênese e alterações da conectividade neuronal e dos volumes cerebrais. Os altos níveis de colesterol causam um declínio na função cognitiva, diminuem a formação de novos neurônios e são um importante fator de risco para o desenvolvimento de doenças neurodegenerativas. O consumo excessivo de álcool leva a uma diminuição geral na neurogênese, e o consumo regular por longos períodos inibe a proliferação e sobrevivência dos novos neurônios.

Nas últimas décadas, os estressores psicossociais influenciam na formação de novos neurônios no cérebro, sugerindo que a diminuição da neurogênese induzida pelo estresse parece ser um fator importante na origem da depressão. Além disso, estudos experimentais e clínicos demonstram uma redução do volume do hipocampo e da formação de novos neurônios associadas ao TEPT.

Seguindo essa linha de raciocínio, existem repercussões diretas no cérebro das pessoas que sofrem com o racismo e com a discriminação racial? Obviamente que sim.

Estudos de imagens cerebrais apontam que experiências de discriminação racial ativam as mesmas regiões cerebrais que estão implicadas no processamento da dor física. Além disso, cientistas de Harvard demonstraram que o racismo estrutural pode causar alterações na citoarquitetura cerebral de crianças e adolescentes que o enfrentam. A (sobre)vivência em um ambiente de racismo faz com que o cérebro dessas crianças se mantenha em estado constante de alerta, provocando o que os autores denominaram de "estresse tóxico".

Dessa forma, esse estado permanente de estresse causa alterações no volume, tamanho e forma de certas regiões cerebrais, impactando no aprendizado, no comportamento e na saúde física e mental dessas crianças e adolescentes. Paralelamente, um estudo de neuroimagem avaliou a integridade da estrutura cerebral de 116 mulheres negras que sofreram racismo ao longo da vida. Nesse sentido, as alterações cerebrais encontradas no cérebro dessas mulheres sugerem que as experiências individuais de racismo aumentam a vulnerabilidade para o desenvolvimento de doenças cerebrais.

O racismo, além de ser crime, é um determinante social de alterações à saúde física e mental ao longo da vida das pessoas. O enfrentamento ao racismo é uma luta diuturna e que demanda ação e cuidado urgentes.

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