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Paul Freston

Governo e evangélicos: o diálogo imperativo

Religiões não são politicamente imutáveis; vide a trajetória católica

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Paul Freston

Sociólogo, é professor de sociologia na UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) e ex-professor catedrático em religião e política no Canadá

Em resposta à entrevista que concedi à Folha ("Governo precisa de ‘bilíngues’ para falar com evangélicos, diz sociólogo da religião", 8/7), o colunista Marcos Augusto Gonçalves pergunta: "Adianta conversar com evangélicos ou melhor enfrentá-los?" (11/7). Para o jornalista, há "presunção na ideia de capturar esse segmento pela conversa". Fala em "combate ao ideário dessas correntes"; "forças hostis aos princípios da democracia têm de ser enfrentadas".

Tal abordagem é desinformada e elitista. É errôneo atribuir hostilidade à democracia aos 70% de evangélicos que votaram em Jair Bolsonaro. Os antidemocráticos ideológicos não são maioria. Mesmo os pentecostais (dois terços dos evangélicos) já tiveram posturas diversas, e pesquisas de suas atitudes divergem dos estereótipos. E, embora reconheça a importância de "não massificar o pentecostalismo", o artigo faz isso. É elitista achar que o fiel obedece cegamente. E impossível imaginar uma manchete perguntando se adianta conversar com judeus ou muçulmanos! Ainda mais porque evangélicos são desproporcionalmente não brancos, mulheres e pobres.

O sociólogo Paul Freston, estudioso da relação entre a religião e a política - Gabriela Biló/Folhapress

Superando isso, o governo enfrenta a questão estratégica. O flerte com os grandes líderes decepciona. E os evangélicos não se aproximam apenas com políticas públicas. Embora muitos tenham se beneficiado dos governos Lula, isso não garantiu apoio. Não é fácil relacionar subida familiar com ações do Estado, e é mais cômodo atribui-la ao esforço.

A chave é o diálogo, usando gente "bilíngue" e visando sobretudo líderes intermediários, influentes mas não presos no poder eclesiástico. Há fração evangélica comprometida com o bolsonarismo e impermeável ao diálogo. Quando comete atos antidemocráticos, tem que ser enfrentada. Mas, quando emite opiniões, mesmo antidemocráticas, deve ser combatida dentro do mundo evangélico e em termos "nativos".

O governo deve dialogar com os não aprisionados nessas correntes, a faixa do meio do mundo evangélico. O diálogo deve ser liderado por "bilíngues". Isso não é presunção; é a receita para qualquer "advocacy". E exige humildade, pois implica aprendizado mútuo. A esquerda que acha que nada pode aprender com evangélicos (a religião mais exitosa entre os desfavorecidos!) não passa de vanguarda arrogante.

A esquerda que quer se aproximar dos evangélicos deve entender que:

1 - é segmento dividido e diverso, que não obedece cegamente;

2 - a aproximação é crucial, pois o eleitorado evangélico não para de crescer;

3 - as religiões não são politicamente imutáveis, vide a trajetória católica;

4 - uma religião ser percebida como incompatível com democracia geralmente se revela percepção errônea. O primeiro candidato católico a presidente dos EUA enfrentou alegações de que a fé católica era "mãe da ignorância, superstição e intolerância" e que representava "uma cultura estrangeira, uma mentalidade medieval e uma hierarquia antidemocrática";

5 - os evangélicos de esquerda são fundamentais para alargar a base social;

6 - diálogo não ameaça o Estado laico. O laicismo "agressivo" exclui as motivações religiosas da esfera pública, mas o "plural" entende que ter atores políticos motivados por religião é diferente da absorção religiosa do Estado.

As bases do diálogo são história e Bíblia. Das grandes religiões, o protestantismo, inclusive evangélico, tem a história mais próxima à democracia. Ampliação do sufrágio, direitos inalienáveis e Estado não confessional tiveram seus primeiros defensores entre dissidentes protestantes do século 17. Um deles disse: "O Estado não deve ser cristão, mas meramente natural, humano e civil". É possível dialogar em termos de origens e fundamento doutrinário evangélico.

O diálogo encontra obstáculos: dos que veem seu papel público como de policial moralista; e do fechamento sectário que impossibilita diálogo. Mas o fechamento é criação sociológica contingente.
Em vez de dizer que não adianta dialogar com os 30% da população que é evangélica, o que decreta a morte iminente da democracia brasileira, é melhor engajar-se na tarefa imperativa de traduzir a mensagem.

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