Morre o brasilianista John Burdick, pioneiro no estudo sobre a ascensão dos evangélicos

Antropólogo norte-americano é autor de estudos sobre raça, religião e movimentos sociais no Brasil

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Manaus

O antropólogo norte-americano John Burdick, autor de estudos sobre raça, religião e movimentos sociais no Brasil, morreu neste sábado (4), aos 61 anos.

Professor da Universidade Syracuse, no estado de Nova York, ele se destacou como um dos pioneiros no estudo da ascensão das igrejas evangélicas. É o tema de seu único livro publicado no país, “Procurando Deus no Brasil” (Mauad, 1999), resultado de sua pesquisa de doutorado.

Antropólogo brasilianista John Burdick, morto em decorrência de um câncer aos 61 anos
Antropólogo brasilianista John Burdick, morto em decorrência de um câncer aos 61 anos - Sarah Wagner Miller/Arquivo pessoal

Desde cedo, Burdick se aproximou de movimentos religiosos de esquerda, como a Teologia da Libertação. Em 1984, quando o jovem pesquisador desembarcou pela primeira vez no Brasil, acreditava que iria testemunhar a proliferação das Comunidades Eclesiais de Base (CEB) a partir da redemocratização do país.

Essa visão romântica não durou muito. Em vez de núcleos engajados da esquerda católica, o jovem antropólogo se deparou com a proliferação das igrejas pentecostais nas regiões pobres do Rio. O resultado está no doutorado defendido em 1990, sob a orientação de Eric Wolf, em que buscou explicar por que a Igreja Católica perdia fiéis para outras denominações cristãs, movimento que perdura até hoje.

No segundo livro, “Blessed Anastácia” (Bendita Anastácia), de 1998, Burdick aprofundou o seu mergulho na religiosidade das favelas cariocas. Sem medo de enfrentar perguntas difíceis, investigou como se dá a formação da consciência racial entre as mulheres negras filiadas a igrejas evangélicas, tradicionalmente hostis às religiões afro-brasileiras.

“Ele transporta o leitor para um mundo onde religião espiritualizada, raça e gênero se cruzam, oferecendo um retrato completamente original de como as concepções raciais e uma história de injustiça se expressam enquanto os brasileiros vivem sua vida cotidiana. Uma etnografia sutil e brilhante, é uma grande contribuição acadêmica”, escreveu o historiador Kenneth Maxwell na época da publicação, em resenha para a revista Foreign Affairs.

O antropólogo brasilianista John Burdick no Rio de Janeiro, onde realizou a maior parte do seu trabalho de campo
O antropólogo brasilianista John Burdick no Rio de Janeiro, onde realizou a maior parte do seu trabalho de campo - Sarah Wagner Miller/Arquivo pessoal

Com mais de duas décadas de atraso, o livro deverá ser lançado no Brasil no ano que vem, pela Edições Malungo.

Na sua obra mais recente, “Color of Sound” (cor do som), de 2013, Burdick prosseguiu na investigação sobre a intersecção entre relações raciais e religião, desta vez por meio do movimento da música gospel em São Paulo.

“Eu me tornei consciente de que, mesmo não estando absolutamente convencido da importância profunda da música, essa incerteza não era de forma alguma compartilhada pelos meus informantes. Em qualquer momento em que eu começava uma conversa com um evangélico, recebia uma torrente de ideias apaixonadas, profundas e complexas, de pontos de vista, de opiniões e de reivindicações”, escreveu Burdick, no prefácio do livro.

Junto com trabalho acadêmico, Burdick nunca abandonou o ativismo iniciado na juventude. No Brasil, sempre apoiava os movimentos sociais por onde passava.

“John coordenava um projeto de pesquisa sobre a questão habitacional no centro e acompanhava há alguns anos a nossa luta e o nosso trabalho por moradia digna, em especial no Quilombo da Gamboa e na Ocupação Vito Giannotti. Mas, mais do que isso, era um grande companheiro, parceiro e apoiador de nossas causas”, escreveu, em nota de pesar, a Central de Movimentos Populares do Rio de Janeiro.

“O que ele propunha era uma antropologia implicada com a justiça social”, afirma o antropólogo Rolf Malungo de Souza, da Universidade Federal Fluminense. Os dois se conheceram em 1995 e desde então se tornaram amigos e colaboradores.

“Perdemos um ser humano que teimava em acreditar que é possível transformar o mundo em lugar melhor e que lutar pela justiça social vale a pena”, diz Malungo, que participa do projeto de moradia junto com pesquisadores de diversas áreas e de quatro países: Brasil, EUA, Reino Unido e Canadá.

“John Burdick foi um inspiração para os historiadores interessados no presente e para os antropólogos que queriam entender o passado”, diz o historiador brasilianista Jeffrey Lesser, diretor do Instituto Halle de Estudos Globais da Universidade Emory, em Atlanta, nos EUA

“Nossos encontros anuais, normalmente no centro de São Paulo, onde pesquisamos, sempre me deixaram com ideias melhores e metodologias novas. Ensinei os livros do John em meus cursos, sempre criaram as discussões mais animadas, acadêmicas e políticas”, afirma Lesser.

Burdick morreu de câncer, diagnosticado há oito meses. Deixa a mulher, Judy Malkin, e dois filhos, Benjamin e Molly. Ao se despedir dele, sua filha escreveu: “Ele queria tanto marchar com o movimento Black Lives Matter. Ele não conseguia andar, mas queria marchar. Serei sempre orgulhosa dele”.

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