Há poucas funções de alto escalão que foram tão subestimadas quanto a presidência do Supremo Tribunal Federal. Atualmente essa relevância é incontestável e, em um momento de crise política aguda, pode ser crucial para a sobrevivência do constitucionalismo e do regime democrático.
O momento histórico coloca um fardo pesado sobre os ombros do ministro Luiz Fux, sobre quem recairá essa responsabilidade de setembro de 2020 a setembro de 2022.
O contexto seria desafiador para a corte constitucional de qualquer país. A crise política se mantém em ritmo acelerado, combinada com crises de ordem institucional, econômica, eleitoral e sanitária.
Em momentos como esse, cortes constitucionais são chamadas para tomar decisões difíceis, que envolvem regular disputas entre os Poderes, proteger a saúde da competição eleitoral, resolver conflitos de distributivos e manter o equilíbrio nas disputas entre maiorias e minorias.
Julgar e decidir quem ganha e perde em tais casos é sempre desgastante para o tribunal. Dada a natureza política dos conflitos, quem perde acusa o tribunal de ser enviesado e parcial.
No STF, há muito em risco, e a situação é especialmente difícil, em grande parte por culpa de como o próprio tribunal se comportou ao longo dos últimos anos.
Para que uma corte constitucional enfrente um Executivo com traços autoritários e populistas, ela precisa ter uma robusta percepção popular de legitimidade. Esse não é o caso do Supremo Tribunal Federal, que foi cada vez mais percebido como uma instituição muito mais política do que técnica.
Essa percepção foi alimentada por decisões monocráticas extravagantes, que transmitiram a impressão de que cada ministro faz o que quiser, independentemente do que diz a Constituição.
O próprio ministro Fux manteve por anos o pagamento de auxílio-moradia a juízes federais e membros do Ministério Público sem remeter a questão para deliberação do colegiado.
Tantos outros casos foram decididos sem deliberação colegiada, com resultados opostos para casos semelhantes: Lula não pôde ser ministro de Dilma, mas Moreira Franco pôde ser de Temer (ambos investigados); enquanto Cristiane Brasil não pôde assumir o Ministério do Trabalho, Sérgio Camargo pôde assumir a Fundação Palmares (ambos com histórico incompatível com a função).
As últimas presidências do STF tiveram uma responsabilidade robusta. A ministra Cármen Lúcia escancarou publicamente os conflitos e divergências entre os ministros envolvendo a Lava Jato e a prisão em segunda instância.
O ministro Dias Toffoli arrogou para si poderes inéditos de interferência em decisões de outros ministros e instaurou o chamado inquérito das fake news sob uma legitimidade questionável.
De modo geral, os ministros se abstiveram de exercer um controle coletivo sobre a atuação extravagante de seus pares. Pedidos de vista (que paralisam processos por tempo indeterminado) e decisões de impedimento e suspeição (que afastam o ministro do julgamento por uma proximidade ilegal com a causa) são tratados como questões de consciência individual.
Tanto foi feito, em nome de tanta coisa e, como resultado, o tribunal simplesmente se apequenou: não tem apoio nem de lavajatistas nem de bolsonaristas nem de petistas nem do setor produtivo nem dos trabalhadores. Desagradou a todos, no afâ de assumir protagonismo e liderança na crise política.
Qual é a saída? Aparentemente para o ministro Luiz Fux a solução seria retirar o STF do centro da vida política. Mas essa não é mais uma alternativa possível.
Os conflitos são inúmeros e serão levados ao STF, como direitos de minorias, questões de segurança pública, finanças públicas, reforma administrativa, federativas, eleitorais e tantas outras que certamente surgirão. Se omitir em relação a tais assuntos é desmontar o tribunal por conta própria.
Para que o STF sobreviva, precisa recuperar sua reputação e seu capital político. Isso exige um controle da pauta de julgamento que equilibre previsibilidade e quais são os conflitos para o qual o desgaste vale a pena.
Isso exige que as regras procedimentais sejam levadas a sério e, com isso, o presidente e os ministros abram mão de alguns poderes. Isso exige a criação de um consenso no tribunal para que cada ministro deixe de utilizar seus poderes a seu bel-prazer.
Isso exige repensar a relação de ministros com a mídia, aumentar a transparência nas questões de suspeição e impedimento nos protocolos de encontro com outros atores políticos.
Isso exige um esforço de consistência por parte dos ministros, para desinibir a existência de uma loteria judicial dentro do tribunal. Isso exige um esforço político de recuperar sua legitimidade técnica.
Esse parece ser o tamanho do desafio: recuperar a legitimidade técnica do Supremo. Se omitir aos conflitos é simplesmente inviável. O que é viável é tentar demonstrar ao máximo que a decisão do Supremo não é dele, mas de aplicação das regras do jogo.
O Supremo precisa convencer que está no conflito imbuído de um espírito de fair play e não de catimba. Em dois anos esse caminho pode começar a ser construído —ou completamente destruído.
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