Reserva de R$ 1,6 bilhão pelo governo para a Covaxin já provocou dano à saúde, diz procuradora que investiga suspeitas

Integrante do MPF defende que governo Bolsonaro cancele nota de empenho que garante pagamento à vacina indiana

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Brasília

O fato de o governo de Jair Bolsonaro ter reservado R$ 1,61 bilhão para uma vacina sem perspectiva de entrega, com quebras de cláusulas contratuais, já se configura um prejuízo à saúde pública. É o que disse à Folha a procuradora da República Luciana Loureiro, responsável pelo inquérito civil público que investigou o contrato entre Ministério da Saúde e Precisa Medicamentos.

O governo emitiu uma nota de empenho –uma autorização para os gastos– no valor de R$ 1,61 bilhão, que corresponde ao total contratado para o fornecimento de 20 milhões de doses da Covaxin (a US$ 15 cada dose). O valor seria suficiente para a compra, por exemplo, de 28 milhões de doses da Pfizer ou da Janssen (ambas a US$ 10 a dose).

A nota foi emitida em 22 de fevereiro. O contrato foi assinado no dia 25. Quatro meses depois, o dinheiro segue reservado, e o país não recebeu uma única dose do imunizante.

“Enquanto houver a nota de empenho, enquanto ela estiver válida, o recurso está reservado para isso”, afirmou Loureiro. “Certamente o prejuízo à saúde pública já está havendo. As doses já eram para ter chegado, os 20 milhões de doses já deveriam estar sendo aplicados. Prejuízo já houve.”

O caso em torno das suspeitas da compra da Covaxin pelo governo Bolsonaro foi revelado pela Folha na última sexta-feira (18), com a divulgação do teor do depoimento do servidor Luís Ricardo Miranda (Ministério da Saúde) ao MPF (Ministério Público Federal) em Brasília. O depoimento foi colhido pela procuradora Loureiro.

Frasco da vacina Covaxin
Frasco da vacina Covaxin - Indrani Mukherjee/AFP

Miranda, chefe do setor de importação, disse na oitiva que recebeu uma pressão atípica para agilizar a liberação da vacina indiana, desenvolvida pelo laboratório Bharat Biotech e intermediada no Brasil pela Precisa Medicamentos.

Com a revelação do depoimento, a CPI da Covid no Senado, que recebeu uma cópia do inquérito e da oitiva, passou a concentrar suas investigações nessa contratação da vacina.

No MPF, o caso foi desmembrado, diante dos indícios de crimes na contratação. No último dia 16, Loureiro enviou os documentos relativos à investigação a um ofício na Procuradoria da República no DF que cuida de casos de corrupção.

A procuradora permanece à frente do inquérito civil público que apura improbidade na distribuição de cloroquina pelo governo Bolsonaro durante a pandemia. A droga não tem eficácia para Covid-19.

“A corrupção pode ser só a promessa de vantagem, não precisa haver recebimento da vantagem negociada”, disse Loureiro. “Já há histórico relacionado a essa mesma empresa, com recebimento de pagamento antecipado, inexistência de entregas e não ressarcimento ao erário”, completou.

A procuradora faz referência a uma ação de improbidade administrativa, movida por ela na Justiça Federal em Brasília em 2018, contra a Global Gestão em Saúde e o ex-ministro da Saúde Ricardo Barros (PP-PR), hoje líder do governo Bolsonaro na Câmara.

A Global, que tem como sócio o mesmo representante da Precisa, recebeu R$ 20 milhões antecipados do ministério para fornecer medicamentos para doenças raras.

Não houve a entrega, e 14 pacientes morreram, conforme a ação. Segundo Barros, houve “inexecução contratual” e adoção de providências para ressarcimento ao erário, sem favorecimento ou improbidade.

Os atuais gestores do ministério, cientes desse histórico, da quebra do contrato para a Covaxin e da falta de perspectiva sobre o recebimento do imunizante, deveriam rescindir o contrato com a Precisa Medicamentos, segundo Loureiro. Ainda não houve pagamentos à Precisa e à Bharat Biotech.

“Com R$ 1,61 bilhão, o ministério pode fazer muita coisa. Tem muitas vacinas contratadas e há uma série de outras com produção aumentando e com possibilidade de contratação ainda no atual momento”, afirmou a procuradora.

A anulação, segundo ela, deve se estender à nota de empenho, emitida há quatro meses para reservar R$ 1,61 bilhão e válida até o momento, à espera de que as doses entrem no Brasil.

A procuradora disse que fez essa sugestão à assessoria de integridade do Ministério da Saúde, no curso das investigações.

“A essa altura, passados todos os prazos de cumprimento contratual, sem perspectiva de cumprimento, acho que rescindir o contrato seria uma medida que daria mais segurança ao gestor. O ideal é liberar esse recurso”, afirmou.

“O risco agora é ao patrimônio. Se houve crime, favorecimento ou promessa de vantagem, independentemente de o valor não ter sido pago, esse crime já teria ocorrido. A apuração é para trás. É a mesma coisa para improbidade, que apura fatos anteriores”, disse a procuradora.

Em resposta às suspeitas na contratação da vacina Covaxin, Bolsonaro mandou a PF (Polícia Federal) investigar o servidor do Ministério da Saúde que apontou pressão atípica para liberação da importação e também o deputado Luis Miranda (DEM-DF), irmão do funcionário da pasta.

O parlamentar afirmou que esteve com Bolsonaro em 20 de março, acompanhado do irmão, no Palácio da Alvorada, ocasião em que relatou as suspeitas existentes. O presidente teria dito que levaria o caso para investigação pela PF.

No comunicado à imprensa em que informou a ofensiva sobre os denunciantes, o ministro da Secretaria-Geral da Presidência, Onyx Lorenzoni, não disse o que Bolsonaro fez diante da denúncia recebida.

A Precisa Medicamentos afirmou que o preço de US$ 15 por dose da vacina Covaxin oferecido ao governo brasileiro segue tabela mundial e é o mesmo praticado com outros 13 países.

A empresa disse ainda, em nota, que “jamais promoveu qualquer tipo de pressão e não contou com vantagens durante esse processo”.

Em nota, o Ministério da Saúde afirmou que respeita a autonomia da Anvisa e que não faz pressão para aprovação de vacinas. A pasta diz que ainda não efetivou a compra de nenhuma dose da vacina Covaxin.

COVAXIN: CRONOLOGIA, RAIO-X DA VACINA E QUEM É QUEM NESSA HISTÓRIA

Cronologia

1ª reunião (20.11)
É feita a primeira reunião técnica no Ministério da Saúde sobre a aquisição da vacina indiana Covaxin, produzida pela Bharat Biotech.

Comitiva (06.01)
Embaixador brasileiro em Nova Déli, na Índia, recebe uma comitiva da Associação Brasileira das Clínicas de Vacinas. Um dos representantes é Francisco Maximiano, presidente da Precisa Medicamentos. A missão visita a Bharat Biotech.

Carta ao 1º ministro (08.01)
O presidente Jair Bolsonaro envia carta ao primeiro-ministro da Índia, Narendra Modi, e afirma que, no programa brasileiro de imunização, estão as vacinas da Bharat Biotech.

Ofício (18.01)
Ministério envia ofício a presidente da Precisa informando querer dar início a tratativas comerciais para aquisição de lotes.

Contrato assinado (25.02)
Contrato é assinado entre Ministério da Saúde e Precisa Medicamentos para a aquisição de 20 milhões de doses.

Nova viagem (05.03)
Maximiano faz nova viagem à Índia. É recebido outra vez na Embaixada do Brasil em Nova Déli. O empresário fala em 32 milhões de doses contratadas pelo Ministério da Saúde.

Pedido rejeitado (31.03)
Anvisa rejeita pedido de importação de doses formulado pelo ministério, por falta de documentos básicos por parte da empresa responsável.

No mesmo dia, um servidor de área estratégica do Ministério da Saúde presta depoimento ao MPF em que relata pressão atípica para importação das doses, inclusive com ingerência de superiores junto à Anvisa.

Fim do prazo (06.05)
Acaba o prazo estipulado em contrato para a entrega dos 20 milhões de doses. Nenhuma dose chegou ao Brasil.

Pedido aprovado (04.06)
Anvisa aprova pedido de importação de doses, mas com restrições, diante da necessidade de estudos extras de efetividade. Nenhuma dose chegou ao Brasil.

Indícios de crime (16.06)
MPF aponta indícios de crime no contrato e envia investigação para ofício que cuida de combate à corrupção.

Raio-x:

  • Valor do contrato: R$ 1,61 bilhão
  • Doses a serem entregues: 20 milhões
  • Valor individual da dose: US$ 15 (R$ 80,70)

Preço das doses de outras vacinas contratadas:

  • Sputnik V: R$ 69,36
  • Coronavac: R$ 58,20
  • Pfizer: US$ 10 (R$ 56,30)
  • Janssen: US$ 10 (R$ 56,30)
  • AstraZeneca/Oxford: US$ 3,16 (R$ 19,87)

Quem é quem:

Precisa Medicamentos: é a empresa que assina o contrato com o Ministério da Saúde. Representa no Brasil a farmacêutica indiana Bharat Biotech.

Francisco Emerson Maximiano: sócio-administrador da Precisa Medicamentos. É o empresário que foi à Índia para viabilizar a representação da vacina Covaxin no Brasil. Também se apresentou como representante de clínicas privadas de vacinação. Maximiano é presidente da Global Gestão em Saúde.

Global Gestão em Saúde: a empresa foi acionada na Justiça pelo MPF por pagamentos antecipados e indevidos feitos pelo Ministério da Saúde. O valor soma R$ 20 milhões. Segundo a ação de improbidade, a Global não forneceu medicamentos para doenças raras e, mesmo assim, recebeu pagamentos antecipados. Catorze pacientes morreram, segundo o MPF.

Tenente-coronel do Exército Alex Lial Marinho: do grupo próximo do general Eduardo Pazuello, e indicado por ele ao cargo, Marinho foi coordenador-geral de Logística de Insumos Estratégicos para Saúde. Parte da pressão para tentar a importação da Covaxin, apesar da falta de documentos junto à Anvisa, partiu do tenente-coronel, segundo depoimento de servidor ao MPF.

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