Sob Bolsonaro, PRF mira operações violentas e fragiliza fiscalização de rodovias

Queda no monitoramento de velocidade e em testes de detecção de álcool é apontada como causa para aumento de mortes em estradas

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Brasília

Sob Bolsonaro, a PRF (Polícia Rodoviária Federal) ampliou suas atribuições e mudou seu eixo de atuação, com afrouxamento da fiscalização do trânsito nas rodovias e aposta no combate ao tráfico de drogas.

A nova postura resultou em apreensões recordes de cocaína e operações com dezenas de mortes —além de ser apontada como causa das novas altas no número de óbitos em rodovias, após sete anos em queda.

Jair Bolsonaro participa, ao lado de agentes da PRF, de cerimônia do programa Agenda Brasil para Todos, no Palácio do Planalto
Jair Bolsonaro participa, ao lado de agentes da PRF, de cerimônia do programa Agenda Brasil para Todos, no Palácio do Planalto - Pedro Ladeira - 21.fev.22/Folhapress

Segundo a Constituição, a PRF tem como função o patrulhamento das rodovias federais. A corporação, entretanto, assumiu novas responsabilidades e, com o desenvolvimento de tecnologias de inteligência, passou a atuar em operações com outros órgãos para coibir a exploração sexual e o trabalho escravo.

No governo do presidente Jair Bolsonaro (PL), a PRF usou como pretexto a Lei do Susp (Sistema Único de Segurança Pública), sancionada em 2018, além de duas portarias, para permitir que agentes da corporação subissem morros e participassem de operações com polícias estaduais.

A primeira portaria foi editada pelo ex-ministro da Justiça Sergio Moro, em outubro de 2019. A norma autorizava a PRF a atuar em operações conjuntas e até a cumprir mandados de busca e apreensão.

Governo sem controle

  • Entenda a série

    A Folha destrincha em uma série de reportagens a situação de órgãos do governo federal após quase quatro anos sob a gestão de Jair Bolsonaro, indicando qual cenário o próximo --ou o mesmo-- presidente encontrará ao assumir em 2023.

O texto contrariou delegados da PF (Polícia Federal) porque permitia que a PRF participasse de ações de natureza investigativa, o que foi considerado uma invasão nas atribuições da corporação.

Em janeiro de 2021, o então ministro André Mendonça (Justiça) editou nova portaria para retirar o trecho que causava discórdia entre as polícias, mas manteve a permissão para atuar em operações conjuntas.

Foi com esse arcabouço legal que a PRF integrou as operações na Vila Cruzeiro (RJ), com 23 mortos, em Varginha (MG), com 26 mortos, e em Itaguaí (RJ), com 12 mortos, entre outras.

Em resposta a pedido via Lei de Acesso à Informação, a PRF afirmou que, de 2018 a 2022, as ações da corporação provocaram 58 mortes. Os dados, porém, não consideram a letalidade das operações com outras forças de segurança.

O ex-ministro da Segurança Pública Raul Jungmann, um dos principais articuladores da Lei do Susp, disse à Folha que a atuação da PRF em operações violentas fora de rodovias é uma deturpação da lei sancionada por Michel Temer (MDB).

"É muito claro que há um desvirtuamento da natureza e da missão legal de uma polícia tecnicamente bem aplicada, com bons quadros, cuja missão é evidente: fazer a fiscalização e o monitoramento dos mais de 70 mil quilômetros de rodovias federais", afirmou.

Para ampliar a capilaridade dos batalhões de choque, a PRF descentralizou o Comando de Operações Especiais e criou, em 2020, comandos espalhados nas cinco regiões do país. Os policiais que atuam nas operações conjuntas fazem cursos específicos. E, com o objetivo de participar de ações fora das rodovias, a PRF do Rio de Janeiro inaugurou, em 2020, uma favela cenográfica para o treinamento dos agentes.

O espaço, de 540 m², simula uma comunidade com 22 casas e uma torre, onde os agentes da PRF em treinamento precisam invadir o local para resgatar vítimas fictícias ou objetos escondidos.

O presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio Lima, afirma que a construção da favela cenográfica é um símbolo da transformação da PRF numa "polícia combatente".

"Você tem a PRF com as mesmas estruturas, mas com normas legais que permitem ao governante transformar a polícia histórica de caráter civil em uma polícia de caráter militar típico."

Projeto de favela cenográfica da PRF; local é usado para treinamento de agentes dos comandos de operações especiais
Projeto de favela cenográfica da PRF; local é usado para treinamento de agentes dos comandos de operações especiais - Reprodução/PRF

Associações vinculadas à PRF e especialistas em segurança pública criticam também o fato de a corporação ter afrouxado a fiscalização nas rodovias, atendendo a pedidos de Bolsonaro.

Em 2019, a PRF suspendeu o uso de radares móveis para aplicação de multas. Os equipamentos, segundo decisão de Bolsonaro, deveriam ser usados apenas com caráter pedagógico, sem punição aos infratores, para reverter a "utilização meramente arrecadatória dos instrumentos medidores de velocidade".

Com a determinação, as infrações de velocidade caíram quase pela metade: de 4,8 milhões em 2018 para 2,6 milhões em 2021. O afrouxamento ainda reduziu em mais de 80% o número de testes que detectam a presença de álcool no sangue realizados pela PRF. Foram 1,7 milhão em 2018 e 299 mil em 2022.

Para o vice-presidente da FenaPRF (Federação Nacional da Polícia Rodoviária Federal), Marcelo Azevedo, a redução na fiscalização foi a principal causa para os números de mortes em rodovias voltarem a crescer em 2019 após sete anos em queda. Em 2011, foram registrados 8.675 óbitos em rodovias federais.

As cifras caíram sucessivamente até 2019, quando foi registrada a primeira alta, com 5.333 óbitos. O dado permaneceu estável, com pequenas variações em 2020 (5.291) e 2021 (5.381).

"Quando [Bolsonaro] fala que existe uma ‘indústria da multa’, que a fiscalização de velocidade só serve para arrecadar dinheiro, cria uma narrativa de que a PRF está perseguindo o cidadão. E historicamente a falta de fiscalização está associada ao aumento das mortes nas rodovias", afirma Azevedo.

Em nota, a PRF diz que a avaliação das variáveis envolvidas no aumento e na redução de acidentes é "extremamente complexa, visto que a frota nacional circulante aumenta a cada ano, assim como ocorre o contínuo aumento populacional, e até mesmo a situação econômica exerce influência nos dados".

"A PRF vem envidando esforços, em todas as frentes do tripé da segurança do trânsito, notadamente no esforço legal, com a sugestão de aprovação e efetiva aplicação de leis, resoluções e ações de educação para o trânsito, estas com a proposta de consolidar uma cultura de segurança viária na sociedade e na infraestrutura, com atuação integrada com agências como Dnit [Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes] e ANTT [Agência Nacional de Transportes Terrestres]."

A Folha também questionou a mudança nas atribuições do órgão, mas não obteve resposta.

O alinhamento da PRF com o Planalto se intensificou em 2020, após Bolsonaro demitir o diretor-geral Adriano Furtado. O motivo da exoneração foi Furtado ter escrito, em abril daquele ano, uma nota afirmando que um agente da corporação havia morrido vítima da Covid-19.

Após a demissão, Bolsonaro nomeou para o cargo Eduardo Aggio de Sá. Ele foi substituído em 2021 por Silvinei Vasques, que segue como diretor-geral da corporação. Na gestão de ambos, o presidente fez visitas a postos, com saudações aos caminhoneiros que trafegavam pelas rodovias.

A PRF apreendeu 40 toneladas de cocaína em 2021 —o recorde do órgão e o ápice de uma alta nas apreensões sob Bolsonaro. Em 2019, foram 24 toneladas da droga apreendidas; em 2020, 30,5 toneladas.

Azevedo diz que o aumento é resultado de uma série de fatores, como o incremento da produção de cocaína em países da América Latina e o investimento em tecnologia da informação, que ampliou a capacidade da corporação de planejar ações específicas contra o tráfico de drogas.

Para Renato Sérgio Lima, do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a PRF deveria criar mecanismos para a prestação de contas.

"Quando você força as instituições a prestar contas, as polícias se regulam. Significa reduzir o grau de discricionariedade. O comandante tem que responder por que autorizou o emprego das forças em cada situação. Essa é a receita para melhorar a segurança no Brasil."

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.