Polícia Federal passou por maior crise de sua história no governo Bolsonaro

Número recorde de 4 diretores comandaram corporação, na mira de apurações sobre interferência política

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Brasília

Após se transformar em uma das instituições mais respeitadas desde a reformulação pela qual passou, no início dos anos 2000, a Polícia Federal registrou as maiores crises de sua história durante o governo de Jair Bolsonaro (PL) e viu sua imagem arranhada por suspeitas de interferência política.

Crises em sequência e trocas de comando —foram quatro diretores-gerais até outubro de 2022, o maior número em um só mandato desde a gestão FHC (PSDB)— expuseram rachas internos e enfraqueceram o órgão a ponto de questões políticas interferirem na nomeação de delegados para cargos de chefia.

Como mostrou a Folha, de forma inédita na história da PF, uma ingerência política barrou em abril deste ano a tentativa da cúpula do órgão de trocar o então superintendente em Alagoas Sandro Valle Pereira.

Sede da Polícia Federal, em Brasília, no Setor Comercial Norte
Sede da Polícia Federal, em Brasília, no Setor Comercial Norte - Pedro Ladeira/Folhapress

Também pela primeira vez foram formalizadas na Justiça denúncias de suspeitas, por duas vezes, de interferências políticas na PF. A primeira, denunciada pelo hoje senador eleito Sergio Moro. A segunda, em junho, pelo delegado Bruno Calandrini, responsável pela operação que prendeu o ex-ministro da Educação Milton Ribeiro.

O primeiro caso foi arquivado. Já o episódio ligado ao Ministério da Educação aguarda manifestação da Procuradoria-Geral da República e da ministra do STF (Supremo Tribunal Federal) Cármen Lúcia.

Governo sem controle

  • Entenda a série

    A Folha destrincha em uma série de reportagens a situação de órgãos do governo federal após quase quatro anos sob a gestão de Jair Bolsonaro, indicando qual cenário o próximo --ou o mesmo-- presidente encontrará ao assumir em 2023.

No caso mais recente, o ministro da Justiça, Anderson Torres, afirmou ter encaminhado à PF um pedido para abrir inquérito sobre os institutos de pesquisas eleitorais, um movimento alinhado aos ataques de Bolsonaro devido à disparidade com o resultado do pleito divulgado pelo Tribunal Superior Eleitoral.

Além disso, no governo atual, nomeações de delegados para cargos internos em superintendências foram barradas pela direção-geral, como nos casos do ex-coordenador-geral de repressão à corrupção Thiago Delabary e de Franco Perazzoni, que investigou o ex-ministro do Meio Ambiente Ricardo Salles.

Os dois foram vetados na gestão de Paulo Maiurino, terceiro diretor-geral no governo Bolsonaro. Até então, as decisões dos superintendentes, indicados pela cúpula, eram respeitadas pela direção.

As turbulências pelas quais a PF passou até agora contrastam com a euforia de integrantes da corporação após a eleição do presidente e a escolha de Moro como ministro da Justiça, ainda em 2018.

A expectativa entre a maioria dos policiais era a de que a bandeira do combate à corrupção levantada por Bolsonaro na campanha eleitoral e o histórico do ex-juiz na Lava Jato garantiriam liberdade de atuação como nunca antes vista, além de mais investimentos e de acolhimento de demandas da classe.

A realidade, porém, começou a se mostrar diferente já em 2019. Em agosto, Bolsonaro anunciou em entrevista que iria trocar o comando da PF do Rio sem consultar a direção do órgão. Ele chegou a revelar o substituto, mas uma nota da corporação negou a indicação e apontou outro nome.

A tensão se agravou, e seus desdobramentos desaguaram no pedido de demissão de Moro, em abril de 2020. O até então superministro sofria derrotas no governo e, após investida de Bolsonaro para substituir o diretor-geral Maurício Valeixo, Moro pediu para sair acusando o presidente de interferir na corporação.

A denúncia resultou num inquérito sobre a suposta interferência, provocando fricções no órgão até março de 2022, quando a PF concluiu que faltavam provas de uma eventual ação do chefe do Executivo.

Além do inquérito, o relato de Moro produziu outro fato inédito. Após a saída de Valeixo, Bolsonaro tentou nomear Alexandre Ramagem para o comando da PF, mas foi barrado por uma decisão do ministro do STF Alexandre de Moraes. No lugar de Ramagem, alocado no comando da Abin (Agência Brasileira de Inteligência), o presidente nomeou Rolando de Souza, que ficou no cargo de maio de 2020 a abril de 2021.

Na sequência, assumiu a direção da PF o delegado Maiurino, que estava fora da corporação havia cerca de dez anos, ocupando cargos por indicação política em governos. Apadrinhado pelo ministro do STF Dias Toffoli, ele ficou apenas dez meses no cargo, tempo suficiente para que sua gestão registrasse uma série de crises e fosse considerada uma das mais tumultuadas da história da corporação.

Além de vetar nomeações de desafetos a cargos de chefia, Maiurino chegou a mandar memorial ao STF em que defendeu o aumento de poder do diretor-geral, em sentido contrário à autonomia de delegados.

Seus atos acabaram por colocá-lo na mira do inquérito sobre a interferência de Bolsonaro na PF. O delegado responsável pelo caso pediu informações sobre o episódio envolvendo a negativa da promoção de Perazzoni e a saída de Saraiva da chefia da PF no Amazonas —os dois investigadores atuaram em casos que esbarravam no então ministro do Meio Ambiente de Bolsonaro, Ricardo Salles.

Maiurino foi substituído em fevereiro por Márcio Nunes, braço direito de Anderson Torres no Ministério da Justiça. Embora respeitado na corporação, Nunes já enfrentou ao menos duas crises internas.

A primeira, ao ter sido impedido de trocar o superintendente de Alagoas, indicado ainda na gestão Maiurino. A segunda, devido à acusação de Bruno Calandrini. O delegado disse em mensagem a colegas que não teve "autonomia investigativa para conduzir o inquérito" e relacionou a decisão de não transferir Milton Ribeiro de São Paulo para Brasília, como a Justiça havia ordenado, a uma "decisão superior".

O caso gerou o encaminhamento do inquérito para o STF, que decidirá se abre uma nova investigação sobre interferência na PF. Para delegados experientes do órgão, as crises e as sucessivas trocas de comando geraram desorganização interna e ausência de unidade na atuação dos investigadores.

Para eles, não há na história recente do órgão outro período de tamanha turbulência. Dois momentos anteriores de tensão, a troca do diretor Paulo Lacerda por Luiz Fernando Corrêa, em 2007, e a demissão de Fernando Segovia, em 2018, dizem os delegados, não impactaram o dia a dia da PF.

Já no governo Bolsonaro, houve o registro de queda no número de prisões em casos de corrupção, parcialmente explicada pela mudança de postura do Judiciário após a Operação Lava Jato. Além disso, o órgão voltou suas forças para ações de repreensão ao tráfico de entorpecentes e apreensão de drogas, em contraposição ao foco de anos anteriores, com combate a desvio de dinheiro público e lavagem de dinheiro.

Diretores da PF na gestão Bolsonaro

Maurício Valeixo (jan.19 a abr.20)

  • Indicado pelo então ministro Sergio Moro, ficou no cargo até a demissão do ex-juiz. Foi diretor de Investigação e Combate ao Crime Organizado durante a Operação Lava Jato

Alexandre Ramagem

  • Chegou a ser indicado por Jair Bolsonaro, mas teve a nomeação barrada por decisão do ministro Alexandre de Moraes, do STF

Rolando de Souza (mai.20 a abr.21)

  • Foi indicado por Ramagem para ocupar o cargo após a decisão do STF

Paulo Maiurino (abr.21 a fev.22)

  • Sem passagens por cargos importantes na PF, chegou ao posto pelo bom trânsito político. Foi chefe da segurança do STF na gestão de Dias Toffoli

Márcio Nunes (fev.22)

  • Era o secretário-executivo do ministro da Justiça Anderson Torres, responsável por sua indicação. De perfil discreto, o delegado passou por quase todos os níveis hierárquicos dentro da PF
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