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Emenda de relator acentua abismo na verba da saúde entre cidades parecidas

Valores são destinados a aliados do governo e parlamentares; em alguns casos, há indícios de fraudes; STF julga modelo

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São Paulo

O uso das chamadas emendas de relator para a saúde pública aprofunda o abismo entre cidades de mesmo porte e condições socioeconômicas com a concentração de repasses a redutos de aliados de parlamentares influentes e do governo Jair Bolsonaro (PL), de acordo com levantamento feito pela Folha.

Esse mecanismo das emendas de relator foi criado em 2019, mas começou a ser aplicado em 2020, intensificando-se desde o ano passado.

Sem transparência, parlamentares do centrão e aliados do governo despejam grandes quantias em determinadas cidades por meio de critérios políticos, deixando outras desassistidas.

Essas emendas estão na mira do STF (Supremo Tribunal Federal), que julga a sua constitucionalidade, enquanto o Congresso busca reduzir as resistências ao mecanismo por meio de uma proposta encabeçada pelos presidentes Rodrigo Pacheco (Senado) e Arthur Lira (Câmara).

Os presidentes Rodrigo Pacheco (Senado) e Arthur Lira (Câmara)
Os presidentes Rodrigo Pacheco (Senado) e Arthur Lira (Câmara) - Ueslei Marcelino/Reuters

Na área da saúde, os empenhos com esse tipo de verba para os fundos municipais de saúde foram de nenhum real a R$ 217 milhões, caso de São Gonçalo, na região metropolitana do Rio. A cidade é governada por Capitão Nelson (PL), um ex-policial militar eleito com apoio do presidente Bolsonaro.

A região metropolitana do Rio e a Baixada Fluminense ajudam a mostrar como as emendas de relator acentuam as desigualdades na saúde. Na Baixada Fluminense, Duque de Caxias é a segunda cidade do país com mais empenhos na saúde oriundos de emenda de relator, um total de R$ 133 milhões.

A apenas 18 km dali, Nova Iguaçu, com população e IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) parecidos, teve empenhos para o seu fundo de saúde no valor de R$ 21 milhões.

Politicamente, as cidades estão em polos diferentes: o ex-prefeito de Caxias, Washington Reis (MDB), é apoiador de Bolsonaro, enquanto o prefeito de Nova Iguaçu, Rogerio Lisboa (PP), chegou a acenar para Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no início de 2022 (no segundo turno, acabou apoiando).

Membros da administração de Nova Iguaçu afirmam acreditar que a questão política é fundamental para explicar por que a cidade foi menos beneficiada que outros municípios de porte igual ou menor.

O peso do favoritismo faz com que a balança pese no total de repasses. De acordo com dados do Fundo Nacional de Saúde, que incluem emendas em geral e demais repasses feitos pela União em 2021, Duque de Caxias recebeu R$ 664 milhões, e Nova Iguaçu, R$ 568 milhões, diferença de quase R$ 100 milhões.

Reis foi alvo de busca e apreensão de uma operação da Polícia Federal que investiga desvios na saúde por meio de cooperativas de trabalho. Em nota, o emedebista afirmou que se colocou à disposição para prestar todos os esclarecimentos sobre o caso.

Sobre as emendas de relator, a reportagem procurou a Prefeitura de Duque de Caxias, que afirmou desconhecer os políticos que viabilizaram os repasses. Porém disse que a transferência se justifica pelos "altos investimentos realizados em toda a rede pública", cuja metade dos pacientes vem de outras cidades.

O presidente Jair Bolsonaro com o prefeito de Duque de Caxias, Washington Reis (à dir.)
O presidente Jair Bolsonaro com o ex-prefeito de Duque de Caxias, Washington Reis (à dir.) - 3.jun.19/Prefeitura de Duque de Caxias/Divulgação

Já a Prefeitura de São Gonçalo afirmou que vinha buscando recursos federais e, por isso, apresentou as dificuldades da cidade aos parlamentares, como o baixo orçamento anual mesmo sendo o segundo município do estado em número de habitantes.

"Vários parlamentares, de diferentes partidos, atenderam às reivindicações e apresentaram emendas para a Saúde de São Gonçalo."

Os apelos de cidades próximas parecem ser muito mais ouvidos do que os de outros locais do país. Das dez cidades que mais receberam valores via emendas de relator, cinco estão no Rio, três das quais localizadas na Baixada Fluminense –além de Duque de Caxias, Magé e São João de Meriti.

Magé, por exemplo, recebeu R$ 88 milhões, quatro vezes mais que Nova Iguaçu, mesmo com um terço da população. Entre os deputados que informaram ter indicado emendas de relator para a Saúde da cidade estão os bolsonaristas Major Fabiana (PL) e Gutemberg Reis (MDB), irmão do prefeito de Duque de Caxias.

O valor somado dos dois é de R$ 3,5 milhões, segundo a prestação de contas —a reportagem não pôde identificar os padrinhos da maioria dos valores, dada a falta de transparência das emendas de relator.

Para o professor de gestão de serviços de saúde da FGV EAESP Walter Cintra Ferreira, esse tipo de gasto desvirtua o SUS (Sistema Único de Saúde). "Esse gasto terá baixo impacto nas condições de saúde, porque vai atender sabe-se lá quais objetivos. Não tem uma racionalidade técnico-social", diz o médico.

Ele diz que, no longo prazo, esse tipo de prática deve acarretar um sistema cada vez mais desorganizado, que troca critérios de saúde por critérios políticos.

"Se parte cada vez maior do financiamento do sistema de saúde é decorrente de emenda, sobre a qual o parlamentar tem livre arbítrio, a política de saúde vai por terra. Chamar isso de política de saúde é um desserviço. É escandaloso, é oficializar o clientelismo."

De acordo com o levantamento da Folha, entre as cidades com IDH menor (até 0,5), o valor máximo recebido em emendas de relator por habitante é de R$ 400. Já na faixa superior (acima de 0,5 e até 0,6), o máximo em repasses empenhados sobe para R$ 1.496 por habitante.

Nesse ranking, o Maranhão se destaca, com seis entre as dez cidades com maiores valores per capta.

O município de Afonso Cunha lidera a lista, com R$ 1.496,20 em emendas de relator por habitante, seguida de perto por Igarapé Grande (R$ 1.410/habitante).

As emendas de relator enviadas para custeio das cidades maranhenses atendem a uma demanda artificial de novos atendimentos ambulatoriais, como foi revelado pela revista Piauí e confirmado pela Folha com base em dados do SUS.

Nos últimos anos, os atendimentos ambulatoriais aprovados em Afonso Cunha não ultrapassavam 100 mil. Mas em 2020 eles passaram a 548 mil e, no ano seguinte, a 848 mil.

Já as consultas de pré-Natal saltaram de 1.300, em 2019, para 13.267, em 2021, e as remoções de dentes saltaram de 516, em 2019, para 10.443, em 2021 —é como se cada morador da cidade de 6.000 habitantes retirasse quase dois dentes.

O Maranhão é o quinto estado com mais empenhos de emendas de relator para a saúde, com R$ 1,1 bilhão. Também foi lá que o o deputado Josimar Maranhãozinho (PL) foi flagrado com maços de dinheiro em seu escritório político —ele é suspeito de desviar dinheiro de emendas parlamentares.

Apesar do volume de recursos para o estado, as emendas ajudam a aprofundar as desigualdades. Também no Maranhão, por exemplo, o município de São Roberto, com população e IDH parecidos (0,516 contra 0,519) com os de Afonso Cunha, recebeu apenas R$ 391 mil de emendas de relator.

Assim, o total de repasses via Fundo Nacional de Saúde, incluindo os do Executivo e de emendas, é bem menor. Enquanto Afonso Cunha teve R$ 6,9 milhões no ano passado, São Roberto recebeu R$ 2,8 milhões.

A reportagem procurou, mas não localizou nenhum representante da Prefeitura de Afonso Cunha.

Questionado sobre distorções causadas pelas emendas, o Ministério da Saúde afirmou que elas são de responsabilidade exclusiva do Congresso Nacional. "Todas as demandas passam por rigorosa análise técnica da área responsável, sem interferência nos recursos liberados pela pasta", afirma o ministério.

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