Descrição de chapéu Junho, 13-23

Evangélicos viveram sua própria 'jornada de junho' em 2013

Malafaia e Feliciano protagonizaram episódios que desembocaram na aliança com Bolsonaro

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São Paulo

Também para as igrejas evangélicas, 2013 foi um ano com gostinho de trailer. Enquanto manifestações demolidoras viravam o Brasil de ponta-cabeça, o segmento vivia sua jornada particular. Uma série de episódios engrossou o caldo conservador que, cinco anos depois, entornaria na aliança entre o católico Jair Bolsonaro e a ampla maioria dos pastores de expressão nacional.

Quando subiu naquele palco, Bolsonaro ainda era um ator periférico na política, um deputado do PP famoso por falas que o acomodavam na cabeceira do extremismo parlamentar. Vide a sugestão de fazer "o trabalho que o regime militar não fez" e matar "uns 30 mil", a começar pelo então presidente FHC.

Era 5 de junho, duas semanas antes dos protestos mais volumosos que tomaram as ruas do país. Dezenas de milhares de fiéis se reuniram numa quarta à tarde, em frente ao Congresso, em ato orquestrado por um personagem fulcral para o enlace entre bolsonarismo e evangélicos.

"Olha que brincadeira", diz o pastor Silas Malafaia, vendo semelhanças entre dez anos atrás e a cena atual. "Organizei aquilo em favor da liberdade de expressão e da família tradicional, contra o aborto."

O pastor Silas Malafaia - Eduardo Anizelli-28.set.22/Folhapress

Se agora lideranças evangélicas se rebelam contra o PL das Fake News, que veem como ameaça à liberdade de um pastor, digamos, declarar que um casamento homoafetivo é passaporte para o inferno, era outro projeto de lei que lhes tirava o sono há uma década.

Com um mote bem parecido, aliás: o PL 122, que criminalizava a homofobia. "Se um casal gay se beijasse no pátio da igreja, o pastor ou o padre que falassem mal podiam pegar de três a cinco anos de prisão", Malafaia revive a crítica.

No mesmo tablado passaram, além de Bolsonaro e ele, outras peças-chave para o enredo político que tomaria os templos.

Estavam lá o senador Magno Malta e a grande estrela do momento, o deputado Marco Feliciano, sob artilharia de movimentos à esquerda após assumir a presidência da Comissão de Direitos Humanos da Câmara. Mais no fundo, a futura ministra bolsonarista e depois senadora Damares Alves, na época assessora parlamentar.

A multidão exibia cartazes que antecipavam as guerras culturais que opõem progressistas e conservadores. Num deles: "Nova moda do Brasil: M.M.A., Minorias Mimadas Autoritárias. Se você falar mal eles te espancam. Cadê a democracia?". Outro, nas mãos de um homem vestido de palhaço, dizia: "Querer calar a igreja é uma palhaçada". Também na mira estavam "ativistas gays".

Dias depois, o país entrava em convulsão social com protestos que começaram na esquerda, pela revolta com passagens R$ 0,20 mais caras, e transbordavam para um mal-estar difuso que, para especialistas, pavimentou a ascensão bolsonarista.

A bispa Sonia Hernandes, que comanda ao lado do apóstolo Estevam Hernandes a igreja Renascer em Cristo, falou com a Folha naquele mês. Acompanhava tudo pela internet. "No meu Instagram, vi um monte de evangélicos postando [fotos]. Tinha a plaquinha: ‘Ore pelo Brasil’."

O passe livre que ela dizia defender era o religioso, para "ver o Brasil mais cheio de Deus". A Marcha para Jesus, idealizada por seu marido em 1993, aconteceria no fim de junho. Feliciano foi, e Magno Malta se apresentou com sua banda de pagode gospel, a Tempero do Mundo.

O senador reclamou então que colegas políticos esnobavam o maior evento evangélico brasileiro. "Qualquer outro tipo de marcha eles vão. É como o cara que tem vergonha de andar no shopping de mãos dadas com você."

Ele e outros líderes cristãos apareceriam abraçados no futuro com Bolsonaro, que se tornou o primeiro presidente a passar pela Marcha.

Dilma Rousseff enviou seu ministro Gilberto Carvalho na edição de 2013. O emissário foi vaiado quando disse falar em nome da presidente, spoiler de uma má vontade nas igrejas que assombraria o petismo nos anos seguintes.

Estevam Hernandes associou no dia o trajeto lotado de fiéis aos protestos populares. "Acredito que muitas pessoas foram motivadas pelas manifestações a estar marchando também."

O apóstolo faz um balanço da década e diz que, de lá para cá, "a igreja adquiriu maior consciência política". Para ele, a turbulência daquele ano ricocheteou na eleição de Bolsonaro em 2018. "Havia um clamor por mudanças, e tinha essa expectativa por um nome conservador."

Na mesma Marcha, Feliciano já levantava essa bandeira. "Eu represento um segmento família da sociedade."

Deputado em primeiro mandato, ele ganhou projeção ao ser escolhido, três meses antes, presidente da comissão na Câmara que zelava pelos direitos humanos. Reportagens à época destacavam o perfil do "pastor polêmico" do Partido Social Cristão, sua legenda na ocasião.

Ele foi tachado de racista e homofóbico por frases como "africanos descendem de ancestral amaldiçoado por Noé" e a "Aids é uma doença gay". E só acabou no posto por um arranjo partidário topado pelo próprio partido governista, reconhece. "Por ser véspera de ano eleitoral, o PT passou a olhar para as comissões mais importantes da Casa. Como o PSC era o último da fila, recebeu uma comissão inexpressiva, que só a partir dali obteve relevância."

Tomou posse sob grita de entidades ligadas aos direitos humanos. O capítulo elevou os decibéis políticos na cúpula evangélica, que se sentiu atacada por tabela. O ato na Esplanada planejado por Malafaia virou também um desagravo a ele, na berlinda midiática, diz Feliciano.

A recém-formada Anajure (Associação Nacional de Juristas Evangélicos) foi procurada para prestar assessoria jurídica, mas o diálogo não prosperou. Seu então presidente, Uziel Santana, chegou a divulgar nota acusando o "movimento político evangélico" de colocar "a sociedade e a imprensa contra os evangélicos ao fomentar uma tresloucada ‘guerra santa’".

"Fui matéria do Jornal Nacional por meses seguidos. Fui capa da revista IstoÉ, entrevistado da Veja e da extinta Playboy. [Muitos] programas de TV", conta Feliciano. "Sacudiram minha vida. Protestos com beijos gay dentro das igrejas. A igreja se levantou, e nesse dia mostramos nossa força."

Pares no Congresso o viam como radioativo e o isolaram, afirma. Raros ficaram ao seu lado. Um deles gritou "vão para o zoológico" a manifestantes contrários a Feliciano. "Bolsonaro me disse: sou seu soldado aqui, você não está sozinho."

Para a antropóloga Jacqueline Moraes Teixeira, professora da UnB com pesquisas em religião, 2013 foi "um ano muito central e estratégico quando pensamos em como algumas pautas começaram a circular de maneira mais capilar no segmento".

Já se espraiava, ali, a ideia de que o PT perseguia igrejas, embrionária para fake news que destroçariam a relação entre esquerda e evangélicos —da "mamadeira de piroca" à intenção de fechar templos.

"Entendemos que precisamos ter representantes nas casas [legislativas], isso é muito mais importante do que ter presidente evangélico", diz Malafaia, que em 2014 emplacou o primeiro membro de sua igreja, Sóstenes Cavalcante, na Câmara.

A Frente Parlamentar Evangélica havia sido oficializada em 2003, início do primeiro governo Lula. Mas sua alergia à esquerda se alastrou para valer na década seguinte. "Tentaram me transformar em exemplo, acabaram me transformando em modelo. Hoje temos a bancada mais conservadora da história."

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