Militares das Forças Armadas seguem livres de responsabilização um ano após 8/1

Apesar de críticas de autoridades e pedido da CPI, altos oficiais ainda não foram atingidos por investigações

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São Paulo e Brasília

Oficiais da cúpula da Polícia Militar do Distrito Federal foram denunciados e presos sob acusação de conivência com os ataques do 8 de janeiro. Quase 1.400 participantes diretos e indiretos das ações na praça dos Três Poderes tiveram destino semelhante. Os financiadores começaram a ser responsabilizados e cobrados, tanto pelo Ministério Público Federal como pela AGU (Advocacia-Geral da União).

Já altos oficiais das Forças Armadas até o momento estão livres de responsabilização, apesar de vozes influentes dos Três Poderes considerarem que parte deles foi no mínimo omissa.

O ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) participou de reuniões do ministro da Defesa com os comandantes das Forças Armadas, pratica considerada inusual em governos anteriores - Divulgação/Ministério da Defesa

"Certamente há autoridades [das Forças Armadas] que de alguma forma incentivaram. Eu me lembro de uma frase do general Braga [Netto] dizendo para aqueles manifestantes que eles tivessem fé e portanto prometendo algum tipo de evolução, isso poucos dias antes desses desdobramentos", disse à Folha o ministro Gilmar Mendes, do STF (Supremo Tribunal Federal).

Tanto Gilmar como seu colega Alexandre de Moraes consideram que houve tolerância indevida da cúpula do Exército em relação ao acampamento em frente ao quartel-general da corporação, em Brasília, local de onde partiram e para onde voltaram os golpistas do 8 de janeiro.

"Eles não deveriam ter existido. Não faz sentido, de maneira nenhuma, pessoas se estabelecerem em frente a quartéis. Isso traz responsabilidade para todos os que admitiram", afirma Gilmar.

Para Moraes, a manutenção dos acampamentos "foi um erro muito grande". Em entrevista à Folha, o ministro contou que afirmou "várias vezes" a autoridades do governo anterior que os acampamentos não representavam "liberdade de expressão", como defenderam os então comandantes das Forças Armadas numa nota emitida em novembro do ano passado, depois da vitória de Lula (PT) sobre Jair Bolsonaro (PL).

"Isso não é permitido em nenhum lugar do mundo. Não há também, como se levantou à época, impunidade ou inviolabilidade nesses locais por serem locais militares. Obviamente que não. A administração é militar, mas os crimes praticados lá podem e devem ser combatidos pela polícia", disse Moraes, lembrando que acampamentos do tipo foram desmantelados em locais em que o Ministério Público ou a prefeitura solicitaram tal medida à Justiça.

"Manifestação na frente de quartel pedindo golpe militar, pedindo volta do AI-5, pedindo a quebra do regime democrático, pedindo o fechamento de Poderes, é crime. Isso o Supremo já pacificou. Agora o processo vai analisar a autoria de cada um", acrescentou o ministro, que é relator dos inquéritos do STF relativos aos ataques.

O subprocurador-geral Carlos Frederico Santos, responsável no Ministério Público Federal pelas primeiras denúncias do 8 de janeiro —com a recente mudança no comando da PGR (Procuradoria-Geral da República), ele entregou o cargo—, diz que a investigação em relação à suposta omissão dos militares das Forças Armadas é "mais complexa". Ele também criticou a condução das ações iniciais da Polícia Federal com o STF, à revelia do MPF.

"Nós não participamos diretamente das primeiras medidas tomadas em relação aos militares das Forças Armadas. O Ministério Público só foi notificado quando já estava tudo pronto", afirmou em relação ao depoimento simultâneo de 80 fardados em abril. "Não houve uma discussão prévia sobre uma estratégia de investigação a respeito desse tema. E deveria ter havido."

"Ouviram todos juntos, simultaneamente. Isso traz prejuízo para a investigação. Não temos pessoas suficientes para acompanhar todos os depoimentos. Facilitaria que a investigação tivesse sido fragmentada –primeiro ouvir os oficiais de base, depois ouvir oficiais superiores e depois ouvir os praças", comentou.

O único aborrecimento às Forças Armadas até aqui veio do relatório final da CPI do 8 de janeiro no Congresso Nacional, que pediu o indiciamento de 22 militares, entre eles nove oficiais-generais, sendo dois ex-comandantes (Freire Gomes, do Exército, e Almir Garnier, da Marinha).

A comissão, porém, não teve força política para tomar o depoimento de generais de quatro estrelas ligados a Bolsonaro, e em Brasília se desconfia dos efeitos práticos do relatório.

Tanto que a aprovação do relatório final da CPI representou um alívio para a cúpula do Exército, após dez meses sob tensão. A caserna vive agora seu momento mais pacífico, sem que investigações apontem para a responsabilização de militares de alta patente pelos fatos que culminaram nos ataques.

Apesar de a senadora Eliziane Gama (PSD-MA) incluir militares graúdos na lista de indiciados, a avaliação é de que a maioria deles tinha ligação direta com o ex-presidente Bolsonaro e as suspeitas estavam relacionadas à atuação deles com o ex-mandatário.

A expectativa atual no quartel-general do Exército, segundo generais ouvidos pela Folha, é a de que, com o cenário adverso revertido, a Força consiga se desvencilhar das consequências jurídicas dos processos sobre o 8 de janeiro.

O comandante do Exército, Tomás Paiva, agiu diretamente para garantir a estabilidade na caserna.

Ele marcou uma série de reuniões com o ministro Alexandre de Moraes, do STF, com o diretor-geral da PF, Andrei Rodrigues, com o presidente da CPI do 8 de janeiro, deputado Arthur Maia (União Brasil-BA), e outros políticos. Em todas as investidas, contou com o apoio do ministro da Defesa, José Múcio Monteiro, que o auxiliou em alguns contatos.

A ofensiva do Exército ocorreu após a caserna ver acumularem notícias sobre as descobertas das suspeitas envolvendo o tenente-coronel Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, e sua família.

Os militares se incomodaram que as revelações foram acompanhadas de operações da PF contra militares em dia de celebração do Exército, quando havia comemoração de datas festivas da Força ou anúncio importante para a caserna.

A ação de Tomás teve efeito. A PF, por exemplo, adiou uma operação que mirava o general Braga Netto para não coincidir com as festividades do Dia da Independência, em 7 de Setembro, após os apelos feitos pelos militares a Andrei e Moraes.

Investigadores ainda decidiram não realizar busca e apreensão contra um general do Alto Comando do Exército, mesmo diante de suspeitas sobre a participação do militar em planos golpistas, segundo relatos feitos à Folha.

A operação era considerada certa na PF, com previsão de data para acontecer, mas o planejamento acabou cancelado e as buscas, suspensas.

Uma articulação considerada essencial pelo Exército para garantir estabilidade institucional para a corporação foi a de Tomás e de Múcio junto a Moraes. O magistrado foi um dos destinatários das reclamações da caserna das operações da PF contra militares em dias festivos.

A proximidade entre os dois vem dos tempos em que Moraes foi ministro da Justiça do governo Temer e precisou lidar de perto com o Exército na segurança e inteligência das Olimpíadas do Rio. Tomás era chefe de gabinete do então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas.

"Tenho um relacionamento há algum tempo já com as Forças Armadas, um relacionamento respeitoso. Acredito na seriedade das Forças Armadas, que, enquanto instituição, não falharam na República", diz Moraes.

O ministro rejeita as críticas de que tal proximidade o faça poupar os militares de eventuais punições pelo 8 de janeiro. "De forma alguma. Também tenho uma ótima relação com a Polícia Federal, tenho uma belíssima relação, talvez até mais próxima, com a Polícia Militar, e isso não me impediu, nem impedirá as investigações em relação à Polícia Militar. Como uma boa relação institucional não está impedindo e não impedirá uma investigação séria e correta em relação às Forças Armadas."

"Até porque, assim como a Polícia Militar e a Polícia Federal, as Forças Armadas também têm interesse em tirar dos seus quadros aqueles que não defendem a democracia, aqueles que são golpistas", completou Moraes

Justiça Militar condena coronel a 1 mês e 18 dias por vídeo

Se na Justiça comum, foro designado pelo STF para eventuais processos de militares envolvidos no 8 de janeiro, nenhum fardado foi ainda responsabilizado, na Justiça Militar apenas um oficial foi condenado, e a uma pena branda. O coronel da reserva Adriano Camargo Testoni foi sentenciado a um mês e 18 dias de detenção por publicar vídeo em ofensa a seus superiores hierárquicos.

Outros dois casos foram enviados pelo STM (Superior Tribunal Militar) ao Supremo. Um deles investiga o coronel da reserva José Placídio Matias dos Santos, que publicou nas redes sociais que Brasília estava "agitada com a ação dos patriotas" e que seria uma "excelente oportunidade para as FA [Forças Armadas] entrarem em jogo, desta vez do lado certo".

Ele também fez ameaças ao ministro da Justiça, Flávio Dino.

Em fevereiro, o Ministério Público Militar pediu para não julgar o coronel, sob o argumento de que não se tratava de crimes sob a responsabilidade da Justiça Militar. A solicitação foi inicialmente negada, mas o STM decidiu enviar o processo para o Supremo.

Da mesma forma, ficou sob responsabilidade do Supremo uma investigação sobre um tenente-coronel que chefiava o Batalhão da Guarda Presidencial e se tornou suspeito de dificultar a prisão de golpistas dentro do Palácio do Planalto.

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