Falta de dados tira periferia da rota de avanços em mobilidade

Integração de diferentes meios de transporte é limitada em áreas mais pobres

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

Às vésperas da década de 20, mobilidade urbana e inovação tecnológica tornaram-se temas indissociáveis. Basta um smartphone para ter em mãos aplicativos de toda a sorte, seja para monitorar a chegada do ônibus, fugir do trânsito ou usar uma patinete encontrada no caminho para o trabalho.

A dinâmica dessa realidade, no entanto, pouco se integra à rotina daqueles que habitam territórios periféricos.

Exemplo disso é a Yellow, marca do aplicativo de bicicletas amarelas que dizia ser possível alugar e deixar suas bikes em qualquer canto da cidade. A proposta teve vida curta: em outubro do ano passado, dois meses após sua estreia, a empresa optou por delimitar a área de atuação, excluindo bairros da periferia de São Paulo.

Mesa de debate do 3º seminário Mobilidade e Inovação. Da esquerda para a direita, Camille Bianchi, professora da Escola da Cidade e fundadora do escritório de arquitetura e urbanismo Readymake; Edmundo Pinheiro, presidente do conselho de inovação da NTU; e Pedro Somma, diretor comercial da Quicko - Reinaldo Canato/Folhapress

Cidade Dutra e Grajaú, no extremo da zona sul, e Brasilândia e Pirituba, na zona norte, foram apagados no novo mapa.

Quem insiste em extrapolar o limite estabelecido está sujeito a multa de R$ 30. Por outro lado, a empresa recompensa quem resgata uma bicicleta que esteja fora da área de cobertura com 5 cupons no valor de R$ 1 a unidade (cada real corresponde a 15 minutos de uso do equipamento).

À época, procurada pela Folha, a empresa justificou a mudança afirmando que a concentração de bicicletas em regiões com muita demanda era necessária para um bom funcionamento do serviço.

Na alçada dos carros, aplicativos de transporte de passageiros impõem uma restrição virtual ao embarque daqueles que estão localizados em áreas consideradas de risco.

Em abril deste ano, a Uber anunciou testes para marcar presença em regiões periféricas. Em Heliópolis, favela localizada na zona sul de São Paulo e uma das maiores da cidade, foram disponibilizados quatro pontos de embarque nos entornos do complexo.

Na região metropolitana de São Paulo, apenas uma a cada cinco pessoas tem acesso a um ponto de transporte público a menos de 15 minutos de caminhada de casa, segundo estudo publicado pelo Instituto de Políticas de Transporte e Desenvolvimento (ITDP) em 2018.

O levantamento ainda mostra que apenas 15% da população de baixa renda está coberta pela rede de transportes na região onde mora. Na faixa de ganhos mais alta, o índice é de 39%. 

“Essas pessoas não têm acesso a novas tecnologias ou a muitas informações e são as que mais sofrem com o deslocamento”, afirmou Camille Bianchi, professora da Escola da Cidade e fundadora do escritório franco-brasileiro de arquitetura Readymake.

Bianchi participou do 3º seminário Mobilidade e Inovação, promovido pela Folha na última quarta-feira (30) no auditório do Unibes Cultural, em São Paulo. O evento contou com patrocínio da CCR.

Entender o deslocamento a pé do domicílio dessas pessoas até o primeiro ponto de ônibus, metrô ou trem é fundamental para que cada uma possa fazer a melhor escolha e tenha acesso pleno à mobilidade, destacou a arquiteta. 

“A experiência da viagem é uma experiência do território. Patinete no Jardim Ângela [zona sul de São Paulo], dada a topografia e a situação das calçadas, é quase impossível”, disse.

A ausência de informações sobre bairros e rotas considerados informais é um obstáculo para a formulação de políticas públicas. 

Para contornar o problema, a combinação de dados do poder público e de iniciativas privadas seria uma possibilidade, afirmou Pedro Somma, diretor comercial da startup de big data e inteligência em mobilidade Quicko.

“Hoje a gente é capaz de falar individualmente com as pessoas, entender o desejo delas e, a partir disso, criar rotas mais inteligentes. É possível otimizar considerando ganhos que a própria malha já oferece e reduzir drasticamente a necessidade de intervenção na cidade”, disse.

Falta, no entanto, conhecimento por parte de organizações públicas para lidar com dados de forma eficiente, ressalvou Somma.

Tornar as redes de transporte coletivo mais flexíveis com a introdução de um sistema de ônibus por demanda, como já acontece em Goiânia, foi a alternativa sugerida por Edmundo Pinheiro, presidente do conselho de inovação da NTU (Associação Nacional das Empresas de Transportes Urbanos).

Na modalidade, os veículos são solicitados por meio de um aplicativo que indica ao usuário o melhor trajeto. As rotas são mais flexíveis, e as viagens, feitas em vans ou micro-ônibus, mais rápidas que em ônibus convencionais.

“[O serviço] tem atendido exatamente aquela demanda que as rotas fixas não estavam respondendo. É um custo menor que o do transporte individual por aplicativo e um pouco maior que o do transporte coletivo, mas com ganho de tempo e redução de automóveis nas vias”, disse.

O ônibus por demanda opera por concessão, o que permite um modelo regulatório mais desenvolvido que o dos aplicativos de carros. Segundo Pinheiro, o modelo começará a ser testado na cidade de Fortaleza ainda neste ano.

Tudo faz pensar que a inovação só cabe nos meios privados, mas não é verdade. É possível, sim, tornar o transporte coletivo mais competitivo”, disse o presidente da NTU.

Questões de gênero devem influenciar planejamento

Aperfeiçoar a mobilidade urbana exige ainda um olhar para grupos específicos, como é o caso das mulheres. Entre 2007 e 2017, os deslocamentos feitos por elas no transporte coletivo na região metropolitana de São Paulo tiveram um aumento de 10%, de acordo com a última pesquisa Origem e Destino do Metrô.

O índice supera as viagens feitas por homens, reduzidas em 3% no período de 10 anos. Apenas no metrô, mulheres representam 56% dos passageiros transportados.

Em seus trajetos, elas enfrentam problemas de segurança —ruas mal iluminadas, assédio e, quando gestantes e com mobilidade reduzida, tempo insuficiente para atravessar semáforos, como aponta pesquisa organizada pelos institutos Ethos e Friedrich Naumann.

O número de registros de crimes sexuais ocorridos em metrôs, trens e outros meios de transporte público em São Paulo cresceu 265% no período de 2008 a 2018, segundo dados da Secretaria da Segurança Pública do estado.

“O assédio e a dificuldade das mulheres para transportar seus filhos dificultam muito a experiência e não são pensadas de forma integrada [ao planejamento de mobilidade urbana] para facilitar”, concluiu Camille Bianchi.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.