Uso de tecnologia no mundo jurídico se amplia, mas exige regulação e debate

Para especialistas, é preciso discutir ética e uso saudável de recursos mesmo com modernização em fase inicial

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São Paulo

A pandemia acelerou o emprego de novas tecnologias no mundo jurídico, a exemplo do uso de bots, do aprendizado de máquinas e de plataformas que fazem gestão de processos.

Em uma pesquisa realizada pelo Datafolha em 2021, 80% dos 303 advogados brasileiros entrevistados afirmaram já ter participado de teleaudiências, enquanto 82% concordaram que o modelo deve ser ampliado no Judiciário mesmo após o fim da crise.

O processo de modernização no Brasil ainda é inicial, avaliaram os especialistas que participaram da segunda mesa do seminário O Futuro do Direito e o Direito do Futuro, realizada na última terça-feira (15) pela Folha com patrocínio da ESPM e apoio do grupo Nelson Wilians.

Imagem mostra evento ocorrendo em um auditório; há um painel azul, no qual estão as imagens de quatro convidados que participam online; à direita, o mediador está sentado em uma cadeira
Na segunda mesa do seminário 'O futuro do Direito e o Direito do futuro', especialistas debateram os desafios da tecnologia na prática jurídica - Keiny Andrade/Folhapress

O levantamento também mostrou que 45% dos advogados disseram usar algum software de gestão de processos.

"É impossível que você, em algum momento da profissão, não passe por alguma ferramenta tecnológica", afirma Daniel Marques, diretor da AB2L (Associação Brasileira de Lawtechs e Legaltechs), citando o processo de virtualização da Justiça, que tem sido regulado por resoluções do CNJ (Conselho Nacional de Justiça).

A inovação também pode ser notada no cotidiano da prática jurídica. Isso acontece desde a contratação de profissionais por meio de plataformas digitais até a adoção de provas eletrônicas nos processos, já que o uso de novas plataformas pela população —em compras pela internet, por exemplo— também interfere no tipo de demandas levadas à Justiça.

"Hoje, as pessoas sofrem invasão da conta de Instagram e WhatsApp, sequestro de dados. A vida está tanto no digital que o operador do direito que está começando ou já terminou o curso precisa aprender a usar a tecnologia, seja para solucionar casos, seja para ajudar na construção de regulamentações", diz Patrícia Peck Pinheiro, fundadora da Peck Advogados.

Para ela, este cenário demanda políticas públicas que organizem e regulamentem questões éticas e de uso saudável das inovações no direito.

Em seu escritório, além de treinar um bot, ou seja, atualizar a base de conhecimento de um sistema, os estagiários participam de pesquisas para a elaboração de projetos de lei nesse setor.

"É uma chance para o direito crescer de maneira digital. Temos que aproveitar estes recursos para formular uma política em que todos se saiam bem, tanto escritórios pequenos quanto grandes, que têm maior poder de investimento em tecnologia", diz Evandro Eduardo Seron Ruiz, coordenador do grupo de pesquisa Tech Law, do Instituto de Estudos Avançados da USP.

A transição digital ocorre desde os anos 2000 no Poder Judiciário com a implementação de ferramentas como o PJe (Processo Judicial Eletrônico), ressalta Ronaldo Lemos, advogado especialista em tecnologia e colunista da Folha, que destaca o pioneirismo desta esfera na modernização do poder público.

Um exemplo de uso inicial da IA (inteligência artificial) nesta área é o sistema Victor, do STF (Supremo Tribunal Federal), utilizado para reconhecimento, classificação e organização de processos.

Ruiz afirma que hoje a face mais utilizada da inteligência artificial é o aprendizado de máquinas, ou seja, sistemas que aprendem com base nas informações disponíveis. Assim, a evolução deste recurso passaria por fases mais longas até que um computador possa tomar decisões.

"Hoje, alguns sistemas de inteligência artificial são utilizados para classificar petições, outros analisam a petição para ver se está faltando algum tipo de documento e outros juntam jurisprudências relacionadas àquele tema. Todas as IAs que existem nos tribunais são para auxiliar e melhorar a eficácia do Judiciário", diz Marques, da AB2L.

Ele afirma que, no Brasil, um dos desafios é a desorganização dos dados dos 75,4 milhões de ações existentes —a aplicação d e algoritmos no corpo dos processos é dificultada até mesmo pelos diferentes formatos de arquivo em que eles são cadastrados nos sistemas.

Para Marques, antes de avançar na virtualização, os escritórios também devem refletir sobre o próprio modelo de gestão de pessoas e processos.

Por outro lado, a implementação de IA pode ser problemática quando as bases de dados que a alimentam são enviesadas, escassas e têm informações distorcidas que podem resultar em decisões preconceituosas, explica Lemos. Para que o modelo funcione bem, é preciso compreender seu desenvolvimento e submeter as bases a revisões constantes.

Neste contexto, Ruiz afirma que uma das possíveis causas também pode ser a falta de equipes multidisciplinares —que reúnam especialistas em direito, em informática e em análise de dados, por exemplo— na elaboração dos bancos de dados e dos sistemas utilizados na prática jurídica.

Citando sua última coluna na Folha, na qual discutiu se a Lei Geral de Proteção de Dados pode ser elitista, ou seja, beneficiar apenas um grupo restrito de pessoas, enquanto o tema de cibersegurança afeta toda a população, Lemos comentou sobre a acessibilidade às novas tecnologias.

"Uma parcela significativa da população brasileira não está conectada ou permanece mal conectada. Além de promover a expansão dos serviços digitais, a gente tem que tomar cuidado para que o direito não seja altamente excludente", diz ele.

Marques, da AB2L, afirma que, hoje, é mais fácil e acessível contratar tecnologias para todos os portes de escritório, inclusive com plataformas gratuitas de gestão de processos para advogados autônomos em início de carreira.

Pinheiro, também especialista em direito digital, afirma que, independentemente da área a ser seguida na advocacia, é fundamental estudar inovações aplicadas ao direito, já que processos seletivos buscam profissionais híbridos, com conhecimento jurídico e também em ciência de dados, por exemplo.

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