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'A regulação pode entender errado', diz presidente do Google

Para executivo-chefe da big tech, defender a companhia de ameaças jurídicas e legislativas tornou-se quase um trabalho em tempo integral

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Richard Waters
São Franscisco | Financial Times

Para o Google, a regulamentação legal atacou com força na semana passada. Depois de anos de nervosismo crescente sobre o poder das Big Techs, dois processos antitruste em nível estadual contra a gigante das buscas nos Estados Unidos foram abertos em dias consecutivos, acrescentando-se a um caso federal iniciado em outubro.

A Comissão Europeia, que trava uma batalha com o Google sobre várias queixas relativas à concorrência na última década, também aumentou a aposta, propondo novas leis abrangentes destinadas a conter o poder de algumas plataformas tecnológicas dominantes.

Para Sundar Pichai, executivo-chefe do Google desde 2015, defender a companhia das diversas ameaças jurídicas e legislativas tornou-se quase um trabalho em tempo integral. Ele também está terminando seu ano à frente da Alphabet, companhia que controla o Google e empreendimentos inovadores como a subsidiária de carros autoconduzidos Waymo.

Sundar Pinchai, vice-presidente senior do Google
Sundar Pinchai, vice-presidente senior do Google - Elijah Nouvelage - 25.jun.2014/Reuters

Cuidar da matriz difusa e dispendiosa e ao mesmo tempo reenfocar o Google na inteligência artificial foram partes menos divulgadas do cargo, mas que no final poderão ser mais importantes.

Gostem ou não, para o Google a intervenção do governo é hoje um fato inevitável. Diante disso, a estratégia de Pichai é clara: em público, aprovar as novas formas de regulamentação e, ao mesmo tempo, tentar evitar seus efeitos mais onerosos. A tática fica evidente por sua resposta à proposta da Europa na semana passada de uma nova Lei de Serviços Digitais que colocaria sobre as empresas tecnológicas mais poderosas maior responsabilidade de policiar suas plataformas.

"Acho que é um regulamento importante para se pensar bem e acertar", disse ele em entrevista ao Financial Times. "Quais são as responsabilidades das plataformas? Qual é o contrato que queremos ter? Onde precisa haver processos claros, mais transparência? Acho que tudo isso faz sentido para mim. Pensar bem nisso tudo e abordá-lo é um esforço válido."

Quando se trata de detalhes, porém, as coisas não deverão ser tão simples. A GDPR, a regulamentação europeia de privacidade adotada há dois anos, teve o efeito de favorecer as companhias que reuniram os maiores conjuntos de dados sobre seus usuários, como o Google. "Isso mostra que para muitas dessas coisas as respostas são matizadas, e a regulamentação pode entender errado", disse Pichai.

"Essas serão questões difíceis que eles terão de abordar", continuou. "Os governos precisam pensar bem nesses princípios importantes. Às vezes podemos criar ecossistemas muito abertos e eles podem ter implicações de segurança."

Naturalmente cauteloso, Pichai, 48, tem o tipo de estilo avesso a confrontos que o torna apropriado para o cargo —um contraste com os cofundadores do Google, Larry Page e Sergey Brin, que fazem uma virtude de sua recusa iconoclástica a fazer as coisas da maneira esperada.

A ameaça mais imediata são os casos antitruste que se acumulam contra a companhia, com políticos sugerindo que poderão até pressionar por uma divisão. A mudança repentina para formas digitais de comunicação e colaboração durante a pandemia, sugere ele, podem ter aumentado o poder econômico do Google, mas ele não foi o único: "Uma coisa é quando só uma empresa está se saindo bem, mas não é o que estamos vendo".

Os argumentos de Pichai têm o estilo polido de uma empresa que recebe contestações antitruste há anos —mesmo que os órgãos reguladores americanos tenham demorado para entrar em ação. Um de seus pontos principais é que as plataformas de tecnologia do Google trazem amplos benefícios ao mundo tech.

Sobre o sistema operacional de celular Android, por exemplo, ele diz: "Estamos fornecendo uma plataforma de software para literalmente centenas de fabricantes de celulares no mundo". Mas as queixas antitruste pendentes contra a empresa a acusam de dominar essas mesmas redes tecnológicas informais, sugando uma parcela desproporcional dos lucros.

"A fórmula do Google é: eles começam com [plataformas] abertas e depois fecham e aumentam o aluguel", disse Luther Lowe, da Yelp, empresa de buscas local que faz campanha contra a tática do Google há uma década. O Android "aumentou a possibilidade de os desenvolvedores criarem apps", disse ele, e ao mesmo tempo sugou a maior parte do tráfego da web para a máquina de pesquisas do Google.

Pichai também nega que o Google usou aquisições para construir uma posição dominante. "Algumas aquisições nós recusamos desde o início", disse ele, sem revelar quais seriam. "Definitivamente há áreas que nem examinamos, do ponto de vista de aquisição", acrescenta ele sobre futuros negócios.

Sua explicação para essa restrição é: "Só queremos fazer aquisições onde podemos fazer inovação", ou algo que beneficiaria os usuários. "Temos esse esquema há muito tempo."

No entanto, Dina Srinavasan, ex-executiva de tecnologia de publicidade que participou da elaboração de um dos últimos casos antitruste nos EUA, disse que a empresa usou as aquisições como parte de uma estratégia para dominar todas as partes da cadeia de valor da publicidade digital, espremendo os rivais para fora.

Outra defesa, igualmente improvável, foi pintar a companhia como um fracasso, pelo menos em mercados dominados por outras plataformas big tech. "Eu vejo a dinâmica do mercado, vejo muitos mercados que não existiam... Há muitas áreas onde somos rivais, seja nuvem ou comércio ou tentar fazer um telefone."

Certamente há grandes mercados em que o Google lutou para criar impacto, inclusive contra a Amazon e a Apple. Mas com um valor de mercado de quase US$ 1,2 trilhão (R$ 6,2 trilhão), e um pulso forte em pesquisas online e publicidade digital que poderão deixá-la com uma receita de mais de US$ 200 bilhões (R$ 1,04 bilhão) no próximo ano, esses protestos deverão parecer ocos.

"O Google só é bom em uma coisa", disse Lowe. "O único modo como ele poderia atuar nesses campos é na malfadada vantagem de dominar e explorar as pesquisas."

Pichai também minimiza a influência do Google no mercado de massa de informação digital. O que um dia pareceu a ousada missão corporativa de uma startup da internet —"organizar a informação do mundo e torná-la universalmente acessível e útil"— corre o risco de soar mais sinistro quando aplicado a uma companhia com tal riqueza e poder.

"Ainda somos uma pequena parte do ecossistema geral de informação, de qualquer modo que você veja", insiste o executivo-chefe. "Se você pegar uma área como vídeo, você vê a quantidade de atores no mercado hoje. Por isso eu acho que há mais informação que nunca. E isso sempre será verdadeiro."

Uma marca da reação foi a desconfiança dos republicanos na eleição presidencial deste ano nos EUA. Pichai parece se resignar à ideia de que o Google se tornou um alvo permanente, não importa o partido que esteja no poder.

"Acho que a informação é essencial para quem somos como humanidade", disse ele. "E acho que as pessoas sempre terão opiniões fortes a esse respeito. Não me surpreende que haja tanta atenção para isso."

Ele também parece resignado com a constante avalanche de reclamações sobre o fracasso em evitar que a desinformação se espalhasse online —enquanto ao mesmo tempo afirmava ter feito progresso significativo.

"Acho que em última instância são os humanos [que] projetarão esses sistemas", disse ele. "Quando observo o progresso que todos fizemos em ranking e qualidade, usando a IA para calcular algumas dessas coisas, acho que o ritmo da inovação é bastante acelerado. Mas há claramente áreas em que a desinformação existe, e temos de trabalhar para melhorar isso. Então as duas coisas são simultaneamente verdadeiras, acho que há muito progresso e muito trabalho a ser feito ainda."

Se este ano termina sob um holofote regulatório, começou num tom muito diferente. Depois de suceder aos fundadores do Google na chefia da Alphabet, ele deu a Wall Street o que ela pedia há muito tempo: uma análise financeira mais detalhada das diversas atividades do Google.

Pichai e Ruth Porat, diretora-financeira da empresa, também têm imposto maior disciplina financeira nos projetos díspares do grupo, nesse processo preparando o caminho para o que começou a parecer uma desmontagem em câmera lenta da Alphabet.

A Waymo recebeu investidores de fora pela primeira vez, enquanto a Verily —divisão de ciências da vida que foi a primeira a buscar fundos além de sua matriz— levantou mais US$ 700 milhões (R$ 3,6 bilhões) na semana passada. Esses negócios têm hoje diretorias independentes, e Pichai admite que seus investidores vão querer vender algum dia.

"Uma das possibilidades para algumas dessas coisas é que elas são empresas individuais fora [da Alphabet]", disse ele. "Não temos qualquer plano específico em mente, mas é um dos caminhos possíveis. Isso faz parte do esquema que a Alphabet está criando, dar essa estrutura. Acho que isso também dá uma chance de outros participarem da viagem."

É uma visão diferente da exposta por Larry Page, que certa vez disse ao FT que a Alphabet poderia se tornar uma Berkshire Hathaway da era digital, montando uma série de empresas não relacionadas e dirigidas de forma independente sob um guarda-chuva frouxo.

Pichai faz questão de minimizar qualquer sugestão de desacordo sobre o futuro da Alphabet —e os fundadores do Google, que abandonaram o envolvimento direto no grupo há um ano, ainda são seus chefes, graças a um tipo de ação que lhes dá 51% dos votos, apesar de terem menos de 12% das ações.

"Acho que eles sempre imaginaram a possibilidade de inovar com a estrutura", disse ele. "Não é como se tivéssemos uma maneira específica de atuar. Estamos examinando o que funciona, e estamos nos adaptando a isso. É assim que eles lidariam com a coisa —e é como eu lido também."

Há outras mudanças de direção aparentes. Page, enquanto dirigiu a Alphabet, disse que não via conexão tecnológica subjacente entre suas diferentes operações: o principal fator determinante era se elas eram suficientemente ousadas e potencialmente transformadoras. Mas Pichai fala em um conglomerado de IA mais coeso tomando forma a partir da coleção de projetos díspares que ele herdou.

Indicando a Everyday Robotics —projeto para construir robôs capazes de cuidar de tarefas cotidianas—, ele diz: "Por que existe isso na Alphabet? Porque a inovação subjacente virá da IA. Por isso o estamos fazendo".

Anunciada no final do ano passado, a unidade foi formada a partir de pesquisas em curso em outras partes do Google. "Nós dissemos: se você quiser construir um robô generalizado para ajudar em tarefas do dia a dia, é um problema difícil", disse Pichai —algo que teria maior chance de sucesso separado das pressões comerciais mais imediatas da companhia de internet.

Indagado sobre se a Alphabet ainda está no negócio de apoiar tantas ideias "lunáticas", ele fala sobre a Wing, empresa de entregas por drones que teve grande aumento de demanda durante a pandemia, e a AlphaFold, um potencial avanço na compreensão da IA sobre como se formam as proteínas.

A inteligência artificial é o motor que impulsiona todos esses projetos. Isso transformou tecnologias como a visão de máquina em capacidades potencialmente básicas que sustentam grande parte do trabalho no Google e na rede maior de empresas da Alphabet.

"A Waymo está levando muito à frente a vanguarda em termos de IA [e] visão por computação", disse Pichai. "E isso se aplica à robótica. Aplica-se à nossa busca: com o tempo, será baseada no que você vê, e não no que você se dispõe a digitar.

"De certas maneiras", ele acrescenta, "o futuro em todas essas coisas está conectado. É isso o que nos dá a tranquilidade de adotar uma visão de longo prazo e investir nela."

O estilo discreto do chefe do Google esconde a escala de sua ambição. Líderes de tecnologia, como o executivo-chefe da Tesla, Elon Musk, muitas vezes adotam um tom hiperbólico quando falam sobre IA, desviando-se para a ficção-científica ao descrever o tempo em que as máquinas vão superar a inteligência humana —ponto conhecido como Inteligência Artificial Geral. Pichai, em contraste, faz a coisa parecer um problema mais prosaico de ciência da computação.

"Eu apenas chamo isso de IA", disse ele. "Com o tempo a IA terá uma natureza mais geral. Ainda acho que temos que andar muito, mas é uma das coisas mais profundas em que estamos trabalhando."

Mesmo com os recursos invejáveis do Google e sua liderança reconhecida no campo, porém, não será fácil construir a máquina de IA que Pichai imagina. Um incidente no mês passado salienta a extensão do desafio empresarial.

Timnit Gebru, que era codiretora de ética da IA, e uma rara pesquisadora negra na empresa, afirmou ter sido demitida depois que a companhia bloqueou a publicação de um relatório de sua coautoria. Ele levantava questões éticas sobre o uso de grandes modelos de linguagem que consomem muitos dados, em que o Google é um dos líderes.

Sua declaração levantou acusações de que o Google estava ocultando pesquisas em uma importante questão ética por interesse próprio. Ela também provocou inquietação interna sobre as constantes lutas da companhia para promover a diversidade.

"Eu definitivamente senti dor e decepção ao passar por um momento como aquele", disse Pichai. "Acho que precisamos entender todas as circunstâncias e ver o que podemos aprender a partir daí. Nem sempre entendemos as coisas direito. Mas como empresa estamos comprometidos a aprender com esses momentos."

Tampouco é a primeira vez que o Google tropeça no que se refere à ética da IA. Quase dois anos atrás, a empresa abandonou um plano de montar um conselho ético de IA formado por assessores externos, depois de enfrentar problemas internos sobre sua composição.

Pichai salienta que a companhia foi uma das primeiras a apresentar publicamente princípios para a aplicação da IA, e afirma que tem processos internos para reger o uso da tecnologia —por exemplo, decidir não abrir sua tecnologia de reconhecimento facial para uso por outras empresas.

"Com o tempo, esperamos que haja regulamentação importante" nessa e em outras áreas da IA, disse ele. O chefe do Google quer que o mundo saiba que sua companhia é o condutor responsável das tecnologias mais poderosas do mundo. Mas nisso, como em tantas outras coisas, ele se prepara para uma época em que ela não exercerá mais essa responsabilidade sozinha.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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