Em Macapá, imensidão do rio Amazonas é vista da Fortaleza de São José

Único estado sem ligação rodoviária com o resto do Brasil, o Amapá restaura seu maior patrimônio cultural e arquitetônico, datado do século 18

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Fortaleza vista de cima, com construções ao fundo e o rio Amazonas.

Vista da Fortaleza de São José, em Macapá, um dos patrimônios do estado amapaense Eduardo Knapp/Folhapress

Macapá

Ao longe, uma imagem desfocada vai, aos poucos, revelando-se aos nossos olhos: são "as ilhas", modo como os moradores de Macapá se referem ao maior arquipélago fluviomarítimo do planeta, cujo centro é a famosa ilha do Marajó. A região insular fica, em sua maior parte, no vizinho estado do Pará, separada pelos 50 km de largura do rio Amazonas.

O estado do Amapá não tem acesso a estradas convencionais que o conectem ao restante do país. Para chegar lá, só pelos ares ou pelas águas. Pelo rio Amazonas, o trajeto, que parte de Belém (PA), pode levar mais de 24 horas. A alternativa são os voos.

Macapá é a cidade brasileira mais próxima à foz do grande rio. As águas dessa região sempre foram motivo de exploração e cobiça. Com o propósito de proteger essa rota vital e evitar incursões estrangeiras pelo Amazonas, a imponente Fortaleza de São José foi erguida à sua margem.

As obras levaram 18 anos: entre 1764 e 1782, graças à mão de obra escrava, de indígenas e de negros, a edificação foi construída. Em uma altitude de 18 m acima do nível das águas, a Fortaleza de São José, que se destaca como a mais importante referência arquitetônica da cidade, começa, neste ano, a passar por um processo de restauração.

Após uma consulta pública feita pelo governo do estado, decidiu-se transformar a fortaleza em um espaço cultural e museológico, com café e restaurante. Acredita-se que essa reforma vá abrir novos horizontes para os visitantes que desejam explorar a paisagem e a história local.

Restauradora e arquiteta, a mineira Deise Lustosa, 60, conta que a obra da Fortaleza de São José pode custar cerca de R$ 32 milhões, recursos que virão por meio do BNDES. A previsão é que seja executada ao longo de três anos. Lustosa é coordenadora técnica do projeto, executado pela Appa (Associação Pró-Cultura e Promoção das Artes), uma organização social de Minas Gerais voltada para a área de patrimônio e cultura.

"A recuperação da fortaleza trará aos amapaenses o retorno de seu maior bem restaurado, com seu museu modernizado, vinculado a novos espaços culturais e de vivência, permitindo que esteja preparado para o seu reconhecimento como Patrimônio da Humanidade", explica.

Tombada pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), em 1950, a fortaleza amazônica é candidata ao título de Patrimônio da Humanidade pela Unesco.

É a partir da Fortaleza de São José, em cujo interior se encontram prédios que abrigavam os antigos armazéns, capela, casa de oficiais e do comandante, casamatas, paiol e hospital, que se pode desfrutar de uma das vistas mais espetaculares da imensidão do rio Amazonas.

Macapá, contudo, guarda outras peculiaridades, entre as quais a de ser a única cidade nacional cortada pela linha do Equador. No chamado Marco Zero, é comum ver os visitantes registrando em fotos o momento em que colocam um pé no hemisfério Norte e o outro no hemisfério Sul. Um obelisco e um relógio de sol ajudam a compor o cartão-postal.

Em datas móveis de março e de setembro, é possível observar o equinócio, momento em que o Sol incide diretamente na linha do Equador, fazendo com que o dia e a noite tenham a mesma duração. Nessas ocasiões, Macapá se torna palco de exposições e de outras atividades alusivas ao fenômeno astronômico.

É justamente por isso que a cidade é considerada a capital "do meio do mundo". Com cerca de 450 mil habitantes, ela possui pontos turísticos que revelam um pouco da história, da cultura e da religiosidade amapaense, mas é inegável que sua força esteja ligada à Amazônia.

Quem busca um mergulho na cultura ribeirinha, por exemplo, não pode deixar de visitar o Museu Sacaca, expoente do modo de vida dos povos das florestas. O ambiente é propício para navegar sobre a diversidade da maior floresta tropical do planeta, que, embora esteja em foco em todo o mundo, ainda é pouco visitada pelo próprio brasileiro. Nos lagos do espaço cultural, dá para ver uma espécie de tartaruga conhecida como matamatá, que, infelizmente, figura na lista de animais em risco de extinção.

Na hora de comprar lembrancinhas, recomenda-se dar um pulo na Casa do Artesão, que oferece um cardápio diverso, composto de cerca de 80 mil peças feitas de madeira, de cerâmica, de sementes e de cipó. A oferta estende-se a biojoias, óleos e sabonetes confeccionados por 700 artesãos.

A quem planeja aproveitar a viagem ao Amapá, que conta com áreas preservadas da floresta amazônica, comunidades tradicionais e biodiversidade, outra dica é dar um rolê pelas redondezas da capital e seguir em direção a Mazagão Velho.

O nome Mazagão é derivado do topônimo berbere "Mazighan", que significa "água do céu", termo usado para designar os poços destinados a recolher as águas das chuvas. Situado a 28 km da sede do município de Mazagão Novo, o Velho foi erguido às margens do rio Mutuacá, que deságua no Amazonas. De Macapá até lá, segue-se pela AP-010, estrada asfaltada, em boas condições de tráfego. Fica a 70 km da capital, numa viagem que demora mais ou menos duas horas.

Mazagão Velho guarda uma história curiosa: o povoado foi fundado em 23 de janeiro de 1770 para abrigar 163 famílias de colonos lusos vindos da costa africana em decorrência dos conflitos políticos-religiosos entre portugueses e muçulmanos. Uma das atrações da região são as ruínas da primeira Igreja de Nossa Senhora de Assunção, erguida no século 18, descobertas graças às escavações feitas por um grupo de arqueólogos da Universidade Federal de Pernambuco. A visita é gratuita.

É ainda em Mazagão Velho que se encontram as raízes do marabaixo, principal e mais autêntica manifestação cultural de origem africana do estado. Resultado da apreensão popular do catolicismo pelos negros escravizados no Amapá, é uma expressão religiosa, com elementos profanos ou lúdicos, na qual se louvam, em especial, a Santíssima Trindade e o Divino Espírito Santo.

Com dança de roda, canto e percussão, o ciclo do marabaixo inicia-se no domingo de Páscoa e segue por cerca de 60 dias. São momentos de confraternização, fé e resistência.

Muitos dos negros escravizados no período de construção da Fortaleza de São José conseguiram escapar dos portugueses e formaram quilombos que existem até hoje e seguem praticando novenas com ladainhas, missas, procissões e levantamento de mastros. São manifestações que, em conjunto com os bailes, compõem essa tradição negra.

Independentemente de entrar no embalo, vale a pena provar a gengibirra (bebida feita à base de gengibre, açúcar e aguardente), servida junto com um banquete preparado pela comunidade. É o combustível perfeito para animar os tocadores de caixa e os dançarinos, que, numa espécie de transe, cantam as estrofes conhecidas como "ladrões de marabaixo".

"Esses versos podem incorporar elementos do cotidiano numa espécie de fio condutor da história cantada", explica Josué da Conceição Videira, 55, coordenador do projeto Raízes Marabaixo. Ele realiza um trabalho de manifestação sincrética com cerca de cem crianças no distrito de Mazagão Velho, a fim de manter vivas as tradições culturais, envolvendo canto, dança e confecção de instrumentos.

O resultado desse trabalho de resgate e preservação pode ser visto nos animados festejos que costumam arrastar multidões. É tudo muito bacana, muito bom ou, como costumam dizer por lá, é paid’égua!

O repórter e o fotojornalista viajaram a convite da Secretaria da Cultura do Amapá

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Tópicos relacionados

Leia tudo sobre o tema e siga:

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.