Passageiros ficam sem lugar para morar após cruzeiro de três anos ser cancelado

Viagem, que passaria por 136 países, custava a partir de R$ 440 mil e não teve reembolso total

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Ceylan Yeginsu
The New York Times

Kara e Joe Youssef venderam seus dois apartamentos, retiraram suas economias de vida, abriram mão da maioria de seus pertences e, no final de outubro, partiram para Istambul em viagem: um cruzeiro de três anos ao redor do mundo, com partida programada para 1º de novembro.

No final de novembro, após meses caóticos nos bastidores, os Youssefs ficaram presos em Istambul, com a companhia de cruzeiros cancelando a viagem. Ela não tinha um navio que pudesse fazer a jornada.

A empresa turca, Miray Cruises, havia anunciado o cruzeiro, chamado Life at Sea, em março. Ela alegava ser o cruzeiro mais longo já feito —382 paradas em portos ao longo de 1.095 dias— e uma comunidade no mar, com oportunidades para explorar o mundo. A internet Starlink e um centro de negócios permitiriam que os passageiros trabalhassem remotamente.

Foto sem data da Miray Cruise com o navio original da viagem Life at Sea: o MV Gemini; a embarcação contava com 400 cabines e capacidade para 1.074 passageiros
Foto sem data da Miray Cruise com o navio original da viagem Life at Sea: o MV Gemini; a embarcação contava com 400 cabines e capacidade para 1.074 passageiros - The New York Times

O cruzeiro parecia ideal para a era pós-pandemia, visando pessoas que ansiavam por uma fuga. Com tarifas a partir de R$ 440 mil, para uma cabine interna, e chegando a R$ 4,7 milhões, para uma suíte, a viagem poderia ser vantajosa, como uma pechincha, para alguns passageiros em potencial, já que o valor era mais barato do que viver três anos em muitas cidades.

No primeiro mês de vendas, mais da metade das 400 cabines do navio já havia sido reservada. Mas montar um cruzeiro dessa magnitude é uma tarefa monumental, exigindo um navio grande o suficiente para transportar centenas de pessoas, direitos de atracação ao redor do mundo e financiamento seguro.

Assim como uma versão em alto mar do Fyre Festival, que prometia um luxuoso festival de música nas Bahamas e entregou sanduíches frios e tendas improvisadas, o cruzeiro implodiu. Os passageiros, incluindo os Youssefs, ficaram frustrados e confusos. Apesar dos reembolsos prometidos, apenas uma pequena parte do dinheiro foi devolvida até agora.

Em uma entrevista em dezembro, Vedat Ugurlu, proprietário da Miray, culpou a falta de financiamento e interesse pelo cancelamento do cruzeiro.

"Fizemos de tudo para encontrar uma solução, mas no final das contas, não conseguimos os investidores e não conseguimos vender cabines suficientes", disse ele.

Kara Youssef, 36 anos, ex-trabalhadora humanitária de Ohio, e seu marido ficaram em Istambul com três malas e uma bagagem de mão, aguardando um reembolso de R$ 391 mil.

"Eles continuaram nos iludindo, nos dando esperança até o último minuto, apenas dias antes de supostamente partirmos", disse ela. "Vendemos tudo o que tínhamos para tornar esse sonho realidade. Nos sentimos completamente derrotados."

Em junho de 2022, quando a indústria de cruzeiros estava se recuperando do fechamento causado pela pandemia, Mikael Petterson, um empresário baseado em Miami, teve uma ideia para um cruzeiro de três anos. Cruzeiros de longa duração não são incomuns, mas geralmente duram no máximo um ano, devido à logística envolvida.

Petterson tinha planos de visitar destinos ao redor do mundo. O que ele não tinha era um navio. Por meio de um corretor, ele foi apresentado à Miray International, que oferecia viagens e serviços de operação de cruzeiros desde 1996.

Ugurlu sugeriu o MV Gemini. Ele havia adquirido o navio com 400 cabines e capacidade para 1.074 passageiros em 2019 e o havia usado principalmente para excursões entre a Turquia e as ilhas gregas.
Petterson não podia comprar o navio, então os dois grupos se uniram. Ele cuidaria do marketing enquanto a Miray cuidaria das operações.

Em novembro de 2022, Petterson assinou um contrato de três meses para desenvolver sua nova marca: Life at Sea Cruises. Ele não havia visto o Gemini, mas disse que confiava nos quase 30 anos de experiência da Miray.

Kendra Holmes, então vice-presidente de estratégia de desenvolvimento de negócios da Miray, disse que a empresa não possuía apenas o navio, mas também um orçamento de cerca de R$ 48,9 milhões para reformá-lo para um cruzeiro tão longo. Ela também mencionou que havia experiência e equipes necessárias.

Petterson visitou a Turquia em dezembro de 2022 e viu o Gemini, mas explicou que seu foco estava no design e na criação de imagens para o marketing. Ele planejava realizar uma inspeção técnica no futuro, disse.

Istambul - Claudia Collucci/Folhapress

"A configuração das cabines era perfeita para os preços e a acessibilidade que estávamos promovendo", contou.

Em 1º de março, a Life at Sea começou a vender espaços no cruzeiro, atraindo milhões de cliques para um site recém-criado. "Foi um sucesso estrondoso, e mal conseguíamos acompanhar", lembrou Petterson.

No início de julho, a empresa anunciou que, "devido à demanda sem precedentes", adquiriu um navio maior com 627 cabines —a ser chamado de MV Lara. Na realidade, a Life at Sea havia feito um depósito e negociava a compra do Lara com a ajuda de investidores. Posteriormente, Ugurlu estimou custos entre R$ 195,6 milhões e R$ 244,5 milhões.

Na época, Mary Rader, 68 anos, assistente social aposentada do condado de Westchester, Nova York, pediu a uma agência de viagens que investigasse a Miray Cruises e foi informada de que era uma empresa respeitável. Quando um casal ofereceu transferir sua cabine para ela com desconto, Mary aproveitou a oportunidade, retirando R$ 391,2 mil de suas economias de aposentadoria. Ela fez dois pagamentos, R$ 244,5 mil e R$ 171,1 mil, mas disse que nunca recebeu um recibo e o casal nunca recebeu um reembolso.

Eventualmente, ela conseguiu um cartão de embarque, mas no aplicativo de cruzeiro, ela e o casal estavam listados na mesma cabine.

Em 26 de setembro, no dia em que o pagamento era devido para garantir o Lara, Holmes recebeu uma ligação de Ugurlu, dizendo que o investidor principal havia desistido, mas que ele estava trabalhando em outros candidatos. Após receber alguns pedidos de cancelamento, Holmes postou no aplicativo de cruzeiro que, de acordo com os termos do contrato, os passageiros que cancelassem agora só receberiam um reembolso de 10%.

Até 27 de outubro, alguns dias antes da partida programada do cruzeiro —com 30 passageiros em Istambul prontos para embarcar—, a empresa anunciou que a viagem havia sido adiada para 11 de novembro e partiria de Amsterdã. Dias depois, a partida foi adiada novamente, para 30 de novembro. Em 16 de novembro, Kara Youssef soube por um jornal que o Lara havia sido adquirido por outra empresa.

"Estávamos frustrados e nos sentíamos presos no limbo, sem informações além do que descobrimos por conta própria", disse ela. Holmes renunciou à Miray no mesmo dia.

Em 19 de novembro, Ugurlu emitiu um comunicado dizendo que os investidores haviam desistido por causa da instabilidade no Oriente Médio; no dia seguinte, a Miray confirmou que o cruzeiro havia sido cancelado.

Um dia depois, os passageiros foram solicitados a assinar um acordo com a Miray, que espalharia os reembolsos em três meses, de dezembro a fevereiro. O primeiro prazo passou em 22 de dezembro, com apenas alguns passageiros recebendo algum dinheiro. A Miray disse que o atraso foi causado pelos bancos que solicitaram documentação adicional.

Os Youssefs disseram na quinta-feira que ainda não haviam recebido seu reembolso. Nos últimos meses, eles têm vivido em um hotel em Istambul pago pela empresa de cruzeiros.

"Poderemos ficar sem-teto em breve", disse Kara Youssef.

Miray, Holmes e Petterson estão agora trabalhando separadamente em outros cruzeiros de três anos, para serem lançados no próximo ano.

Rader não está otimista. "Ainda não recebi nada, mas não esperava", disse ela. "Minha suposição é que a empresa será fechada ou reestruturada, e qualquer quantia em dinheiro que eu tenha investido nunca será paga."

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