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Zeca Camargo

Viajar para um novo lugar é um misto de medo e fascinação

Tirar férias é sinônimo de se libertar da rotina e ter o privilégio de, por alguns dias, só pensar no seu prazer

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Durante muito tempo, quando eu chegava a um lugar que ainda não havia visitado, eu tinha uma espécie de flashback que não consegui bem identificar. Não era como se eu me lembrasse de já ter passado ali, mas uma sensação de já ter vivido uma certa estranheza.

Era sempre um misto de excitação e medo, que até hoje, mesmo já tendo identificado a origem disso, ainda me sinto incapaz de definir com precisão. É como estar sozinho, mas não exatamente indefeso, animado com as possibilidades de descobertas, mas desconfiado do que o desconhecido pode trazer.

Quando comecei realmente a encarar "o resto do mundo", expressão que gosto de usar para definir meus destinos além do lado ocidental, passei a identificar mais e mais essa sensação com um misto de medo e fascinação.

Ilha do Sol, no lago Titicaca, considerado o lago mais alto do mundo
Ilha do Sol, no lago Titicaca, considerado o lago mais alto do mundo - Fernando Christo/Folhapress

Notoriamente me lembro de algumas primeiras vezes em algumas cidades que traduzem bem essa situação. Como meu passeio inaugural pelo bairro de Silom em Bancoc, ouvindo ska dos anos 1960 no meu recém-adquirido iPod e me sentindo o turista mais especial da Tailândia.

Navegando pelo lago Titicaca, pelas suas margens peruanas, senti a mesma coisa, sem saber ao certo se o que me atravessava era um fenômeno interno ou um fruto da atmosfera rarefeita dos quase 4.000 metros de altura por onde eu circulava.

Vivi isso também enxugando as lágrimas na chegada a Tombuctu, sem acreditar que estava finalmente num lugar dos meus sonhos. O mesmo vale para o momento em que desembarquei na ilha de Naoshima, no Japão. E para aquela manhã em que vi de perto, finalmente, o Círio de Nazaré passar.

Mesmo já tendo identificado de onde vem essa sensação —um segredo de viajante que já já vou revelar—, ainda sinto algo assim numa escala inédita. Os últimos territórios onde carimbei meu passaporte, Bulgária, Malta e Botsuana, me trouxeram também essas experiências.

Na verdade, acho que parte da minha decisão de viajar para um novo país, conhecer uma nova cultura, tem sempre a ver com o frisson de poder viver isso de novo.

Sou sempre convidado para falar de viagens, de faculdades de turismo a eventos corporativos. E gosto de provocar dizendo que os motivos que temos para viajar se resumem a três "Ds": Desconectar, Descobrir e Deslumbrar.

O primeiro é o mais óbvio de todos, talvez o maior apelo para alguém viajar. Quando você pensa em viagem, pensa em se desconectar. Para citar mais dois Ds: descansar e (se) desligar.

Tirar férias é sobre isso. Se libertar da sua rotina e ter o privilégio de, pelo menos por alguns dias, só pensar no seu prazer, na alegria de quem viaja com você, sejam seus amigos, seja sua família.

Num mundo conectado como o nosso, está cada vez mais difícil vivenciar esse desligamento, mas essa ainda é a principal motivação para sairmos do nosso quintal, para nos deslocarmos, mesmo que seja perto ou por pouco tempo.

O segundo D tem um componente mais comprometido. Viagens, na minha família, sempre foram uma recompensa, um prêmio por ter feito alguma coisa certa, geralmente na escola. Talvez veio daí a lição de que viajar é também ampliar o seu conhecimento, abrir-se para a interatividade: conhecer pessoas diferentes, mergulhar em uma cultura estrangeira.

Nos meus anos mais formadores, era isso que me movia. Primeiro eu queria conhecer os museus da Europa. Depois, os tesouros da Ásia. E aí, a ancestralidade humana na África. Mesmo quando visitamos um lugar conhecido, sempre há o que descobrir.

E aí temos o terceiro D, do deslumbramento...

É esse que me fez entender, ainda que não exatamente esmiuçar, o que sinto quando estou num lugar novo. E tem a ver com um despertar de todos os sentidos. Com estar com todos eles aguçados, alerta e ao mesmo tempo frágil. Sem medo, apenas expectativa.

E é essa mistura que me leva a uma lembrança distante, da primeira vez que saí do Brasil, aos nove anos: Buenos Aires, Argentina, aquele destino tão "exótico".

Eu estava na República de los Niños, um parque temático na cidade de La Plata. Fruto da era peronista, a atração aspirava a ensinar aos "pibes" conceitos de civilidade e educação, reproduzindo em escala infantil instituições como um correio, um banco, uma casa de cultura, um posto de bombeiro, um tribunal e até uma cadeia (!).

Na minha memória, o nome era Ciudad de los Niños, mas assim como o resto que lembro de lá, isso pouco importa. O parque existe até hoje e já teve altos e baixos. Mas a razão dessa visita de mais de 50 anos ser tão importante para mim tem mais a ver com o espírito da minha versão mirim do que com o próprio lugar.

E o que é esse espírito se não o deslumbramento em si? Nossa capacidade de nos entregarmos a destinos insólitos, desafiadores, sedutores, enigmáticos. Porque se não for para se sentir assim, não pego nem uma escova de dentes para sair de casa.

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