Tuberculose e observação marcaram a vida de Manuel Bandeira
Manuel Carneiro de Souza Bandeira Filho, conhecido simplesmente como Manuel Bandeira (1886-1968), foi um dos escritores brasileiros mais importantes da modernidade. Sua obra poética, pela qual é mais conhecido, é classificada como parte do movimento modernista pelo uso do verso livre e por sua temática. A linguagem utilizada pelo poeta, muitas vezes vista como simples, fez com que durante muito tempo Bandeira fosse visto pela crítica como um poeta menor dentre os escritores brasileiros. O homenageado pela sétima edição da Flip terá suas obras completas reeditadas pelas editoras Nova Aguilar e Nova Fronteira, que também relançam o livro "Estrela da Vida Inteira", agora com um CD de áudio com leituras de poemas feitas pelo próprio autor.
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Escritor Manuel Bandeira será homenageado na festa literária |
Mas Bandeira é muito mais do que um poeta menor. Mais, até, do que poeta. O pernambucano que foi morar no Rio de Janeiro aos quatro anos de idade foi poeta, claro; mas foi também proseador, ensaísta, tuberculoso, solitário, gentil e um defensor agressivo de sua maneira muito particular de escrever. Apesar de apoiar o movimento modernista, não participou da Semana de 22 [a Semana de Arte Moderna ocorrida em 1922]: seu poema "Os Sapos" abriu a manifestação em defesa da arte moderna, mas ele mesmo não concordava com a ferocidade das críticas feitas aos parnasianos. Nunca quis ser parte de movimento nenhum; queria apenas poder traduzir o seu mundo de um modo que, em seus próprios versos, "(...) fosse terno dizendo as coisas mais simples e menos intencionais".
Talvez Bandeira fosse escritor por nascimento. Saiu com a família de Recife em 1886, para viver em São Paulo e no Rio de Janeiro. De acordo com as aspirações de seu pai, em 1903 foi cursar a Escola Politécnica na capital paulista, para tornar-se engenheiro ou arquiteto.
Tuberculose
Porém, um ano depois, é obrigado a interromper os estudos por estar doente: aos 18 anos Bandeira descobriu-se tuberculoso, um diagnóstico quase fatal na época. Foi desenganado pelos médicos e passou boa parte da vida esperando pela hora de morrer –o que ocorreu apenas em 1968, quando ele tinha já mais de oitenta anos.
É por isso que a doença é uma constante em sua obra, como ele mesmo coloca:
"E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
deixando um acre sabor na boca.
" Eu faço versos como quem morre.
("Desencanto', em "A Cinza das Horas", ed. Nova Fronteira)
Ao receber seu diagnóstico é que Bandeira começa a escrever, enquanto procura algum tipo de cura. Passa por Quixeramobim, Teresópolis, Maranguape, até encontrar um sanatório na Suíça. É lá onde permanece os dois últimos anos da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). Influenciado pela desolação da guerra e pela própria solidão, causada pela constante movimentação em busca de lugares serranos, escreve seu primeiro livro, "Poemetos Melancólicos". Talvez em mais um ato de certa ironia da sua vida, ao deixar o sanatório, largou lá os originais, e nunca conseguiu refazer integralmente os versos escritos.
Mortes
Nos seis anos que se seguiram a sua volta, o escritor perdeu as únicas pessoas que eram constantes em sua vida: em 1916, morre sua mãe; em 1918, sua irmã; e em 1920 morre seu pai, que havia custeado, apenas dois anos antes, a publicação de "A Cinza das Horas", o primeiro livro editado do poeta. Juntando-se o cotidiano da doença, o medo da morte, a tristeza das perdas e a sua solidão, Bandeira tinha tudo para ser um homem rabugento, melancólico e triste. Pelo contrário: era bem-humorado, sorridente (apesar de dentuço), gentil. Ainda que se considerasse "muito feio", adorava ser fotografado, servir de modelo para quadros ou caricaturas, ser retratado de todos os jeitos possíveis.
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Carlos Drummond de Andrade (à esq.), José Olympio e Manuel Bandeira em foto de 1954 |
Foi também a morte de seus parentes que o levou a procurar a companhia de outros escritores: em 1921 conhece Mário de Andrade. Este, entusiasmado com o segundo livro de Bandeira, "Carnaval", o chama de "precursor do modernismo", e o apresenta a seu círculo mais próximo de amigos: Sérgio Buarque de Hollanda, Jaime Ovalle, Menotti Del Picchia e Oswald de Andrade.
A partir daí, o pernambucano tomou para si a tarefa de transportar a sua vida para o papel. Publicou poemas e crônicas que falam sim de morte e perda, mas também de vida, de liberdade, de amor. Escreveu muito sobre a sua infância em Recife, época que considerou uma das mais marcantes da sua vida: "Quando comparo esses quatro anos de minha meninice a quaisquer outros da minha vida de adulto, fico espantado do vazio destes últimos em cotejo com a densidade daquela quadra distante". É dessa época que aparecem personagens e lugares constantes na sua obra, como a Preta Tomásia, Totônio Rodrigues, as ruas Aurora e União.
Como não ganhava dinheiro com sua literatura, custeou, do próprio bolso, a publicação de uma das suas obras mais famosas, em 1930: "Libertinagem" (ed. Nova Fronteira). São desse livro alguns de seus poemas mais conhecidos: "Pneumotórax", sobre a tuberculose, e "Poética", sobre o próprio ato de escrever e fazer poesia, ato para ele encarado como fundamental para a sua sobrevivência. Em 1937 recebeu seu primeiro prêmio literário por sua poesia: cinco contos de réis, dados pela Sociedade Felipe de Oliveira. Mais tarde, em sua autobiografia, "Itinerário de Pasárgada" (ed. Nova Fronteira), ele conta "Parece incrível, mas é verdade: aos 51 anos, nunca eu vira, até aquela data, tanto dinheiro em minha mão".
Também não veria muito, pelo resto de seus dias. Sustentou-se como professor de literatura, como tradutor, como crítico literário. Escreveu biografias, ensaios sobre literatura e sobre sua cidade natal, o Recife, além de uma série de contos publicados em antologias de prosa. Essa parte de sua obra, muito menos conhecida do que seus poemas, é incrivelmente saborosa: Bandeira era um observador engraçado, curioso, e que procurou retratar em contos e crônicas o Brasil de sua época, e que permanece para além da morte do escritor.
Leitura e escrita
Sua crítica literária é fruto de um leitor atento e que se deliciava com o próprio ato de ler, visível no comentário que faz sobre "Grande Sertão: Veredas", de Guimarães Rosa: "Depois de ler você a gente fica com vontade de cantar aquela musiquinha... Eu sou pobre, pobre, pobre, rema, rema ré...".
Apesar da doença que o acompanhou a vida inteira, ou talvez por causa dela, foi um homem que buscou aproveitar intensamente o que fazia, e registrar tudo por escrito: via um quadro e escrevia sobre ele, ouvia uma música e escrevia sobre ela, observava uma demolição de uma casa e transformava o episódio cotidiano em literatura.
Escrever foi a maneira encontrada por Bandeira de não deixar que a tuberculose lhe roubasse a vida, as memórias e as relembranças provocadas pela simplicidade do seu cotidiano. Foi a maneira que encontrou de viver o que não podia viver de fato. Quis ser arquiteto e não pôde. Amava as mulheres e não se casou nunca, dizendo que tinha perdido a vez, mas escreveu sobre erotismo e sexo com uma ternura presente em poucas obras literárias. Teve medo da morte e a transformou em rima, celebrando tudo de simples que há na vida e que tomamos, na loucura do cotidiano, por garantido e besta. "Bestar", aliás, era uma de suas atividades favoritas, que ele transformou em verbo e em verso, para descrever como passava seus dias.
"Tive de parar os estudos por causa da doença. Não estudei cálculo infinitesimal ou integral e isso me impediu de ler muitas coisas, inclusive a teoria de Einstein. Nas horas de ócio da doença, não me apliquei ao estudo de grego e latim, iniciados no Colégio Pedro 2º. Isso é quase tudo o que não fiz." ("Itinerário de Pasárgada") É o que Bandeira dizia sobre si mesmo, sabendo que, ao apenas escrever sobre a "vida inteira que poderia ter sido e não foi" –"Antologia", da obra "Estrela da Vida Inteira" (ed. Nova Fronteira)–, já transformava a possibilidade triste da morte numa maneira de aproveitar a "delícia das coisas mais simples" –"Belo Belo", também de "Estrela da Vida Inteira". A nós, leitores, nos resta ler Bandeira e "bestar" sobre ele, nos reapropriando por meio dos seus escritos de cada uma de suas lembranças.
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