Na Bienal, americana que biografou Marx diz que 'teve sorte' com crise de 2008
Contar a vida do ideólogo máximo do comunismo, Karl Marx (1818-1883), sendo americana, foi o desafio da escritora Mary Gabriel, que lança no Brasil o livro "Amor & Capital - a Saga Familiar de Karl Marx e a História de uma Revolução" (editora Zahar). Ela esteve nesta quarta-feira (4) na Bienal do Livro do Rio.
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Em sua primeira visita ao país, a escritora falou com a Folha sobre o trabalho de recuperar as tensas relações familiares do personagem --esforço que exigiu algumas milhas voadas pela Europa e uma verdadeira caça a livros e correspondências escritas por familiares do pensador ao longo do século 19.
Mary, jornalista que trabalhou como editora da agência Reuters por 20 anos, conta ainda as razões que a motivaram a mergulhar em uma faceta pouco explorada de Marx e a recepção que a obra teve em seu país natal. Disse ter dado "sorte" com a crise financeira global de 2008, que pôs em dúvida conceitos enraizados no mercado de capitais americano e trouxe Marx de volta ao debate econômico nos Estados Unidos.
No sábado, às 14h, Mary Gabriel participa de um evento do Café Literário, dentro da Bienal do Livro do Rio, chamado "Boemia, Vida Familiar e Revolução", ao lado de Daniel Aarão Rodrigues e Andrew Miller.
Leia a seguir um trecho da entrevista concedida por Mary à Folha.
*
Folha - Sendo americana, qual a razão do seu interesse por Karl Marx?
Mary Gabriel - Eu recém havia mudado para Londres e estava procurando por um novo tema. Eu já tinha interesse em Marx porque meu avô era um imigrante da União Soviética e, ao chegar a Londres, notei que Marx era muito presente lá, incluído entre os principais filósofos. Havia placas celebrando os lugares onde ele havia vivido e as pessoas falavam nele abertamente e com frequência, o que era muito incomum para mim, que sou americana. Nos Estados Unidos, ninguém fala sobre Marx.
Então comecei a analisar e vi que a história de Marx combina os temas que eu adoro, que são história russa, filosofia e história francesa, porque muito do seu trabalho e o impacto de suas obras foi sentido na França. E, claro, eu adorava a história do próprio Marx, adorava o que se dizia sobre o que estava por trás de sua vida e de suas teorias. Então, eu estava procurando por um ângulo e me surpreendi ao descobrir que, de todos debates e livros sobre Marx, não havia nenhum que tratasse da vida dele com sua família, sobre o ambiente em que ele trabalhava, sua vida pessoal. Então eu comecei a trabalhar nisso.
Como foi o trabalho para recuperar a história familiar de um homem que, ainda que conhecido no mundo todo, morreu há 130 anos? Quais foram suas técnicas de pesquisa?
Posso dizer que por um lado foi fácil, por outro bastante complicado. Para sorte dos historiadores, as pessoas do século 19 costumavam escrever cartas. Eu não sei o que faria e o que vão fazer em relação às pessoas do século 21, que mandam e-mails ou mensagens de texto. Mas havia os trabalhos coletivos de Marx e Engels publicados em inglês, eu não leio em alemão. E havia 50 volumes de material à disposição, e eu acho que dez deles que traziam correspondências, assim descobri a história.
Então pesquisei quantos textos consegui, "escavando" por fontes primárias. Havia um livro em francês que trazia cartas de filhas de Marx, mas não mais que 200 páginas incluindo notas de rodapé. Eu sabia que havia mais cartas por aí, e assim eu comecei a tentar encontrá-las. Visitei arquivos na Inglaterra, Alemanha, Itália e França, mas não conseguia achá-las em lugar algum. Mas eu tinha um colega em Moscou que esteve em arquivos específicos e me falou do que viu lá, uma série de documentos que me permitiriam escrever o livro que eu queria escrever.
Havia também uma maravilhosa coleção de material primário em uma biblioteca, um centro de pesquisa em Amsterdã, entre os arquivos nacionais de história social. Então, entre Moscou e Amsterdã eu tinha as informações de que precisava. Assim, reconstruir o sentimento no entorno de Marx era a parte fácil. Com os dados obtidos, eu pude entrar no mundo em que ele estava, a partir daquelas cartas escritas ao longo de décadas.
Tendo mergulhado no universo de Marx, sua visão das teorias e da obra de Marx mudou?
Definitivamente, porque antes disso eu pensava em Marx como alguém frio, distante. Ele realmente não era alguém que viveria a vida normal que nós vivemos, ele não tinha fome, não era alguém que sofresse ou que lutasse contra esse tipo de problema. Ele era uma torre de marfim intelectual.
Mas, a partir do livro, vi que ele era o oposto disso. Foi uma das coisas que eu pessoalmente descobri, lendo sua vida privada. Eu não podia supor que ele havia vivido uma vida de depravação, pondo sua família para sofrer porque eles mesmos acreditavam que era necessário passar pelos sacrifícios que ele dizia serem.
Se imaginava que a obra dele falava de algo distante, quando ele fala sobre o que acontecia ao redor de si mesmo. Ele escrevia não só sobre o sofrimento de sua família e das pessoas pelas ruas, mas também sobre a convulsão política em seu entorno. Ele estava de fato vivendo suas teorias. Isso é muito raro para um filósofo.
Você tem uma carreira consolidada como jornalista. Como suas habilidades de redação serviram para o livro?
Na determinação. Como jornalista, quando você segue uma história, vai adiante sem se importar quão difícil vai ser. Eu sabia que a família Marx tinha uma história que jamais havia sido contada. E eu não podia me conformar com isso. Como poderia não ter sido contada? Desde a morte de Marx, quantos livros foram escritos? Talvez o suficiente para fazer uma exposição em qualquer idioma.
Eu ficava me perguntando se pode ser verdade que essas informações existiam sem nunca terem sido publicadas. Como jornalista, eu sentia a certeza de que a história existia e de que eu tinha como consegui-la. Basicamente, usei as técnicas de investigação que nós jornalistas geralmente usamos.
Outra coisa que tentei foi fazer com que a história não ficasse remota, distante. Eu nunca faria algo estranho como "eu acho que posso escrever isso em primeira pessoa", ou tentar fazer disso algo contemporâneo. Mas tentei fazer com que o leitor pudesse sentir-se como vivenciando a história daquela família.
Como você mesmo disse, os americanos não falam muito sobre Marx. Como foi a recepção ao seu livro no mercado editorial dos Estados Unidos?
Foi surpreendente. Para sorte minha, em 2008 houve um colapso no mercado financeiro. E aí, as pessoas começaram a falar sobre Marx de novo. Mesmo economistas graduados de Wall Street começaram a dizer: "Talvez Marx esteja certo sobre o capitalismo". E eu acho que ele estava certo sobre o capitalismo também.
E eu então tive a sorte de que o meu livro saiu exatamente neste momento, isso foi perfeito. Houve também várias pessoas que não entendem. Pessoas que nem mesmo leram o livro e que acreditam que o fato de simplesmente se dizer o nome de Marx pode trazer um raio demoníaco sobre o chão dos Estados Unidos. E-mails maldosos, blogs. Houve até uma pessoa que me mandou voltar para a China... (risos).
Mudando de assunto, qual a sua opinião sobre feiras literárias como a Bienal do Livro do Rio?
Impressionante. Até disse para algumas pessoas que se um evento assim acontecesse nos Estados Unidos eu não sei se alguém iria. A participação é maravilhosa. É estimulante ver pessoas celebrando os livros, e não simplesmente como um negócio, não uma relação simples entre consumidor e vendedor, mas pessoas comuns buscando suas leituras. Crianças das escolas recebendo uma pequena quantia de dinheiro para comprar livros também é ótimo! São milhares, mas mesmo que 100 pessoas viessem aqui animadas com a possibilidade de ver livros já seria uma vitória, nos dias atuais. Para mim é absolutamente inspirador.
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