Cidadãos de governos instáveis, vulneráveis à crise climática, estão esquecidos, diz ativista

Ayisha Siddiqa, que nasceu em comunidade tribal no Paquistão, defende que jovens enfrentem a indústria de combustíveis fósseis

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Cristiane Fontes Marcelo Leite
Oxford e São Paulo

"Para o inferno com sua sustentabilidade. Meu povo está morrendo", afirmou a ativista paquistanesa Ayisha Siddiqa, 24, em um discurso na Semana do Clima em Nova York em setembro passado. Nos meses anteriores ao evento, o país onde nasceu, numa comunidade tribal no norte, sofreu com fortes enchentes que deixaram mais de 1.700 mortos.

"O que começou como um desastre climático e natural tornou-se, em seguida, um desastre sanitário. Depois, passou a ser um desastre de violência contra mulheres —e continua sendo tudo isso junto. É também uma crise de fome", afirma Siddiqa à Folha quando perguntada sobre a situação atual do Paquistão.

A ativista também participou do Fórum Econômico Mundial, em Davos, em janeiro, e questionou o fato de haver um grupo vulnerável que tem sido deixado sistematicamente de fora do debate sobre a crise climática: os cidadãos de governos instáveis.

Retrato de mulher jovem com lenço no cabelo
A ativista ambiental Ayisha Siddiqa, cofundadora da organização Polluters Out, que milita contra a indústria dos combustíveis fósseis - Pamela EA/Divulgação

"A Síria, o Afeganistão, o Irã, o Paquistão e todo aquele cinturão que consideramos resultado da guerra ao terror estão sofrendo enormes desastres climáticos, mas as pessoas não estão falando sobre isso", destaca ela, que se mudou para os Estados Unidos ainda na infância. "Eles não têm educação, linguagem técnica, estabilidade política, sistemas judiciários."

Para ela, que é cofundadora da organização Polluters Out (fora, poluidores), por meio da qual ministra um curso para a formação de jovens líderes, chamado de Fossil Free University (universidade livre de combustíveis fósseis), as novas gerações já têm conseguido estimular o debate dentro de suas casas.

Falta ainda, no entanto, ela diz, que consigam influenciar efetivamente mudanças nos sistemas.

"Precisamos das ferramentas que nossos oponentes têm. Precisamos de advogados, precisamos de pessoas do setor financeiro. Minha previsão é que o movimento jovem vai se concentrar no enfrentamento da indústria de combustíveis fósseis", afirma.

Grupo de crianças apertadas em um bote improvisado com dois homens as conduzindo com a água na altura do pescoço
Crianças são resgatadas de enchente no Paquistão durante monções na província de Balochistan em agosto de 2022 - Fida Hussain - 26.ago.2022/AFP

Cobrar os atrasos no combate às mudanças no clima causados pela "preguiça de nossos políticos", como define Siddiqa, traz, porém, fatalmente, ansiedade aos jovens, ela admite.

"Sentir ansiedade e pessimismo climáticos, na verdade, não é um sinal de incapacidade mental ou de doença, tampouco é um problema. Na verdade, é um sinal de sanidade. Ao admitirmos e articularmos esse pessimismo, demonstramos que estamos sintonizados com a realidade", avalia.

Qual é a situação atual do Paquistão, após as enchentes do ano passado, que afetaram 33 milhões de pessoas? Isso tem sido usado para promover a agenda de reparação climática? A situação no Paquistão é horrível. O que começou como um desastre climático e natural tornou-se, em seguida, um desastre sanitário. Depois, passou a ser um desastre de violência contra mulheres —e continua sendo tudo isso junto.

É também uma crise de fome. As reparações materiais não estão chegando a quem precisa. Recebemos US$ 9 bilhões (cerca de R$ 46,9 bilhões), mas creio que US$ 8 bilhões ainda estejam bloqueados.

O país está passando por uma crise de enorme magnitude, e há previsão de seca para o próximo ano. Não sei para onde as coisas vão, mas a instabilidade política está muito, muito alta.

Num discurso muito comovente em Nova York em setembro passado, você disse: "Para o inferno com sua sustentabilidade. Meu povo está morrendo". Como devemos abordar o greenwashing e as promessas e compromissos superficiais de sustentabilidade? Acabei de voltar do Fórum Econômico Mundial. Todo mundo tem um bóton dos ODSs (objetivos de desenvolvimento sustentável) ou de sustentabilidade no peito.

Anteriormente, as empresas de combustíveis fósseis e as grandes corporações fingiam que a crise climática não existia. Agora, as mesmas empresas e corporações mudam seus logotipos, se vestem de verde e se apresentam como líderes de uma transição renovável.

Isso é incrivelmente assustador para mim, porque, se eles forem os líderes da transição renovável, isso quer dizer que não fizemos nada para mudar. Tudo o que fizemos foi entregar uma economia diferente para as mesmas empresas.

Em termos práticos, como podemos manter a indústria de combustíveis fósseis fora de todos os aspectos da sociedade, conforme defende o movimento Polluters Out, do qual você faz parte? É como uma droga, e estamos ficando sem ela. Como chegar lá não é a questão: o que é importante é a velocidade com que chegamos, e qual é a nossa intenção.

Estamos indo nessa direção e, quando sentirmos os sintomas de abstinência, não saberemos como lidar com isso coletivamente. A guerra entre a Ucrânia e a Rússia é um bom exemplo disso. Para que consigamos realizar uma mudança sistêmica, uma mudança local e uma mudança pessoal justas, precisamos começar do topo, mas isso não aconteceu ainda.

Você poderia se aprofundar no que disse recentemente em Davos sobre aqueles que normalmente são deixados para trás quando falamos a respeito dos mais vulneráveis aos impactos da crise climática? A vulnerabilidade, na minha opinião, é um tópico complicado porque alguém que não é vulnerável determina quem é vulnerável.

Uma classe de vulnerabilidade que constantemente deixamos de fora são os cidadãos de governos instáveis. A Síria, o Afeganistão, o Irã, o Paquistão e todo aquele cinturão que consideramos resultado da guerra ao terror estão sofrendo enormes desastres climáticos, mas as pessoas não estão falando sobre isso.

Essa também é a região em que os Estados Unidos, o Reino Unido e o Ocidente entraram para extrair petróleo. Agora eles estão passando por instabilidade política e nos dizem: "Não mandem dinheiro para lá porque isso ajudaria os terroristas".

Quando o Afeganistão teve inundações, ninguém doou nada –"porque se doarmos para o Afeganistão, daremos dinheiro para o Talibã".

Mas o que fazer em relação aos cidadãos desses governos instáveis onde, de fato, ocorre a crise climática? Eles não têm educação, linguagem técnica, estabilidade política, sistemas judiciários…. Eles nem conseguem gritar: "Ei, estamos passando por uma mudança climática!".

Isso realmente precisa ser analisado, porque, na verdade, esses governos estão instáveis agora, mas isso também representa o futuro de todos nós: é para onde estamos indo coletivamente.

Qual é a melhor maneira de fazer a ponte entre a legislação ambiental e o movimento da juventude pelo clima, como você propõe? E como você acha que esse movimento deve avançar nos próximos anos? A razão pela qual a litigância climática é, na minha opinião, um ativo incrivelmente importante é que os tratados climáticos que estão surgindo em nível internacional não são vinculativos.

Se os Estados Unidos não cumprirem suas NDCs (contribuições nacionalmente determinadas ao Acordo de Paris, na sigla em inglês) este ano, praticamente ninguém pode fazer nada. O mesmo vale para o Brasil, para o Canadá, para o Egito...

Acho que, nos próximos anos, haverá muito mais ações judiciais de comunidades contra seus governos, e de governos contra outros governos. Ao mesmo tempo, não é tão promissor quanto parece, porque toda vez que um marco legal é estabelecido para deter o avanço de uma empresa de combustíveis fósseis, uma grande corporação, ou um governo, eles encontram outra maneira de causar destruição. Então, vamos ter que ser criativos também.

Na sua opinião, quais são os casos mais promissores na agenda de litigância climática e como tornar a litigância mais acessível às comunidades vulneráveis? Algo para prestarmos atenção agora é o processo que Vanuatu e as nações insulares estão movendo no Tribunal Internacional de Justiça. Eles estão pedindo ao tribunal que emita um parecer dizendo que a violação das metas climáticas dos Estados constitui uma violação dos direitos humanos. Se o tribunal emitir tal parecer, isso criará precedentes legais.

Mas como tornar essa litigância mais acessível? Ela não é acessível, é muito complexa. Venho trabalhando num projeto que visa a superar essa lacuna, que se chama Climate Legal Defense Network [rede de defensoria climática].

Precisamos de um mecanismo internacional que garanta que, quando alguém estiver em perigo, possa pegar o telefone, ligar para alguém e receber apoio. Precisamos de mais advogados ambientais e de direitos humanos. No momento, as grandes firmas de consultoria acionam seus advogados ambientais, que estudaram direitos de propriedade, ou que estudaram direito penal, e os usam contra as comunidades, em vez de usá-los a favor delas.

E quais são os próximos passos para o movimento da juventude pelo clima? As greves (pelo clima) funcionaram, cumpriram seu propósito de levar o assunto para dentro das casas e gerar debates. Essa parte foi feita. Agora precisamos influenciar os sistemas internamente.

Precisamos das ferramentas que nossos oponentes têm. Precisamos de advogados, precisamos de pessoas do setor financeiro. Minha previsão é que o movimento jovem vai se concentrar no enfrentamento da indústria de combustíveis fósseis.

Você poderia também comentar suas impressões sobre a COP da biodiversidade (conferência da ONU), realizada no fim do ano passado, no Canadá, da qual você participou pela primeira vez? A COP da biodiversidade foi muito interessante. As empresas começaram a se unir em torno de uma nova linguagem chamada "nature positive" (natureza positiva).

Na minha opinião, é como se fosse um sinal de alarme: de repente, 50 corporações querem se comprometer com algo ecologicamente correto. Na COP15, o que os governos estavam buscando junto às corporações era uma espécie de compensação pela exploração da biodiversidade. Ou seja, você planta árvores numa parte do mundo para compensar o fato de estar derrubando árvores em outra parte do planeta.

Isso criará um sistema de imperialismo: a diferença é que, em vez de a dívida ser o mecanismo pelo qual os países ganham poder, agora é a terra, a biodiversidade, as espécies, os recursos.

E como você se sente em relação à próxima COP do clima, em Dubai? Minha organização se chama Polluters Out, e o presidente da próxima COP é o CEO de uma empresa petrolífera. É um conflito de interesses assustador.

Para mim, chega de COPs. Cada vez mais, a cada ano, está se tornando uma farsa. As COPs viraram uma oportunidade para os países se congratularem e se darem tapinhas nas costas por terem feito o mínimo necessário.

Alguns slogans são realmente interessantes: "COP da implementação", "COP da inclusão". Nossa, estou cansada de tantas palavras.

Se a redução das emissões de carbono fosse nosso dever de casa, estaríamos 23 anos atrasados. A preguiça de nossos governos e políticos é incompreensível para mim, porque em nenhum outro setor isso seria tolerado. Nós seríamos demitidos se fizéssemos algo assim, seríamos expulsos da escola.

Você já escreveu sobre a ansiedade climática e, pelo que acabou de dizer, sinto que você tem uma espécie de desespero climático, ou pelo menos soa muito pessimista. Como é ser uma ativista em meio a esse clima? Eu fiz um longo trabalho de pesquisa, que publiquei recentemente numa revista médica, sobre a ansiedade climática e o pessimismo que estou explicando a você.

Sentir ansiedade e pessimismo climático, na verdade, não é um sinal de incapacidade mental ou de doença, tampouco é um problema. Na verdade, é um sinal de sanidade. Ao admitirmos e articularmos esse pessimismo, demonstramos que estamos sintonizados com a realidade.

Não estou aqui para vender falsas esperanças e falsos sonhos. Deixo isso para os políticos. Eu estou tentando fazer o máximo possível para preservar o que tenho e o que temos —enquanto ainda dá tempo. É por isso que estou reconhecendo todos os fatos negativos com um senso de esperança talvez ingênuo, ou talvez infantil.

Para realmente entender o que nos resta, vamos precisar de mais amor do que nunca, vamos ter que ter mais esperança do que nunca, vamos precisar de mais comprometimento cego do que nunca; e, se eu puder ser uma dessas pessoas, que assim seja.

Por que você diz que a luta pela justiça climática é, no fundo, uma luta pelo amor? A palavra "luta" é a melhor escolha para estar ao lado de "amor"? Sim, a palavra luta se encaixa bem com amor porque, quando você ama alguma coisa com muita intensidade, você luta para preservá-la. Na minha opinião, essa é fundamentalmente uma luta pelo amor à humanidade. Não acho que a humanidade se ame o suficiente.


RAIO-X

Ayisha Siddiqa, 24

Ativista climática radicada nos Estados Unidos, pertence aos povos tribais de Moochiwala e Mahsan, localidades do norte do Paquistão. Estudou no Hunter College (EUA) e tornou-se pesquisadora do Climate Litigation Accelerator (acelerador de litígios climáticos) da faculdade de direito da NYU (Universidade de Nova York). É cofundadora da organização Polluters Out e da Fossil Fuel University, iniciativas voltadas à formação de jovens lideranças para a justiça climática e para a exclusão da indústria de combustíveis fósseis.


ENTENDA A SÉRIE

Planeta em Transe é uma série de reportagens e entrevistas com novos atores e especialistas sobre mudanças climáticas no Brasil e no mundo. Essa cobertura especial acompanhou também as respostas à crise do clima nas eleições de 2022 e na COP27 (conferência da ONU realizada em novembro no Egito). O projeto tem o apoio da Open Society Foundations.

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