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Biden acelera o declínio da influência americana na política internacional

EUA não podem mais dominar sozinhos a política internacional porque o resto do mundo aprendeu com os próprios EUA

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Foi durante a sessão especial do Congresso para declarar guerra à Alemanha em 1917 que o senador americano e ferrenho opositor da entrada dos Estados Unidos na Primeira Guerra Mundial Hiram Johnson teria cunhado a frase "a primeira vítima de uma guerra é a verdade". Vinte e cinco anos depois, na Segunda Guerra, o primeiro-ministro inglês Winston Churchill disse: "Em tempos de guerra, a verdade é tão preciosa que deve sempre ser protegida por um guarda-costas de mentiras".

Se é verdade que os EUA estão sinceramente interessados em defender a soberania política e a integridade territorial ucraniana, a falta de provas concretas nas declarações do governo americano de que a Rússia está prestes a iniciar uma ocupação militar tem desgastado a credibilidade do governo de Joe Biden. E também causado rachaduras na Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan), levando importantes países europeus membros da aliança, como França e Alemanha, a tomar distância da retórica bélica e a buscar entendimento por meio do diálogo.

Reunião entre o presidente francês Emmanuel Macron (dir.) e o presidente russo Vladimir Putin, em Moscou, nesta segunda-feira (7) - Sputnik/AFP

Até mesmo o presidente ucraniano, Volodimir Zelenski, sem descartar a possibilidade de uma guerra contra a Rússia, rebateu os EUA, dizendo que imagens de satélite por si só são insuficientes para avaliar a extensão do acúmulo militar de Moscou na fronteira. Mais de uma vez, ele acusou os americanos de estarem alimentando uma sensação de pânico que prejudica a economia de seu país.

Do outro lado, desde o início das tensões, quando estacionou mais de 100 mil soldados e equipamento militar na fronteira com a Ucrânia, Vladimir Putin repete que quer apenas defender os interesses russos e nega que tenha intenção de invadir o vizinho. Até agora, sincero ou apenas estratégico, tem conseguido demonstrar que está falando sério.

Na direção oposta de Biden —que cumpriu a ameaça feita em 28 de janeiro de enviar tropas americanas para o Leste Europeu mesmo sem o apoio da Otan—, desde o dia 31 de janeiro, segundo a agência de notícias russa Interfax, 10 mil soldados e equipamentos de Moscou que estavam estacionados na fronteira próxima da Ucrânia já retornaram para áreas de destacamento fixo em outras partes do país.

O impasse ucraniano nos dá os primeiros indícios de que os dias em que os EUA podiam agir despreocupadamente como a polícia do mundo podem estar chegando ao fim.

Não é de hoje que ações militares de governos americanos, republicanos ou democratas, são acusadas de serem fundamentadas sobre pretextos falsos: as centenas de milhares de mortes no Iraque, vítimas da acusação fraudulenta de que Saddam Hussein produzia e exportava armas de destruição em massa; a intervenção militar na Líbia, que deveria proteger a população do país contra agressões do regime, mas terminou com o assassinato do ditador Muammar Gaddafi e deixou o país abandonado nas mãos de milícias armadas e grupos terroristas; e, por fim, o abandono do Afeganistão após 20 anos de ocupação, com jovens desesperados despencando vivos de aviões em fuga e com Biden afirmando, levianamente, que o objetivo nunca havia sido o de participar da construção de uma nação.

Os americanos são propensos a acreditar que o bem sempre triunfa sobre o mal e que nenhum governo é inerentemente tão bom quanto aquele imaginado pelos fundadores da sua república.

John Rawls, maior filósofo político e moral americano nos últimos tempos, destilou as obras de grandes filósofos europeus que inspiraram os fundadores da república americana alertando o quanto o sistema político, econômico e cultural dos EUA havia se afastado de seus princípios fundamentais.

Liberdade, limitação e divisão dos poderes do Estado e responsabilidade individual, valores consagrados na Declaração de Independência e na Constituição americana podem estar saindo de moda na sociedade hipercapitalista, mas países antes praticamente isolados —principalmente na Ásia e a própria Rússia pós-União Soviética— absorveram muitas das práticas americanas nas áreas de política, economia, ciência e tecnologia.

Uma razão pela qual os EUA não podem mais dominar sozinhos a política internacional é que o resto do mundo aprendeu com os próprios EUA.

Putin pode não representar valores considerados nobres, e é certo que não vivemos num mundo perfeito, mas todos os países europeus sabem que conquistaram muita coisa desde as duas Guerras Mundiais.

A política de supremacia global americana está em decadência, e a Europa moderna não é mais o continente desunido e pobre que foi um dia. Portanto, não há por que permitir que alegações vazias, aparentemente pavimentadas por boas intenções, repitam na Ucrânia os crimes que causaram o inferno vivido por iraquianos, líbios e afegãos.

O alerta contido nas frases de Hiram Johnson e Churchill, cada uma muito verdadeira em seu próprio tempo e contexto histórico, parece ter sido rejuvenescido pela tensão militar na fronteira entre a Rússia e a Ucrânia. Ainda bem.

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