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Repórter especializada em economia, é formada em ciências sociais pela USP e em direito pelo Mackenzie. Foi ombudsman da Folha de maio de 2019 a maio de 2021.

Ainda a hidroxicloroquina

Jornal reestimula controvérsia onde não existe e colhe punhado de cliques

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Na terça-feira (29), a Folha publicou na página 3 do jornal impresso, na seção Tendências / Debates, o texto “A imprensa e a hidroxicloroquina”, que se propôs a discutir a cobertura sobre o medicamento.

No texto, argumenta-se que, embora não se saiba se a hidroxicloroquina tem ou não eficácia contra a Covid-19, a falta de ceticismo afetaria a cobertura do tema pela imprensa, que, no esforço para fortalecer o discurso de que a cloroquina não funciona, cometeria uma série de erros.

“Enfim um pouco de sensatez no debate do que devia ser uma questão técnica", disse um leitor. "Como Trump falou bem da droga, a imprensa ficou contra”.

É curioso que o artigo aponte como exemplo problemático uma reportagem da Folha de agosto (“Site faz placar de pesquisas pró e contra uso de cloroquina”), que apresenta todos os elementos de que o autor diz sentir falta na cobertura.

Além de ouvir sete especialistas com avaliações diversas sobre os estudos de eficácia do medicamento, a matéria é recheada de recomendações similares às sugeridas pelo autor em seu texto: que estudos devem ser lidos com uma dose de ceticismo, que é preciso tirar a política do debate científico e que a discussão sobre a eficácia das drogas contra a Covid-19 está longe de acabar.

Mais do que discutir o conteúdo em si, vale tentar entender o que levou a Folha a publicar, a esta altura, um texto que, ao tentar fazer o exercício saudável de criticar a cobertura jornalística, volta a embolar o debate sobre a cloroquina.

Já abordei o assunto em uma de minhas colunas. Um dos alertas que fiz naquele momento, meados de abril, era que a Folha corria o risco de embarcar na canoa furada da fórmula de opor “um texto a favor, outro contra”, o que, por se tratar de um medicamento, poderia pôr em risco a saúde de muitos.

Por que recorrer novamente à fórmula?

Como perguntou um leitor, cabe dar publicidade à opinião que contraria o consenso da comunidade científica em um momento tão confuso e dramático? A pluralidade justificaria a publicação?

O artigo enxerga erro onde ele não existe. Em resposta ao texto, o editor-chefe da revista Questão de Ciência, Carlos Orsi, afirmou em artigo também publicado na Folha que, hoje, a incerteza quanto à ineficácia da hidroxicloroquina contra a Covid-19, em qualquer fase da doença, é irrelevante o suficiente para que a imprensa possa tratar essa ineficácia como comprovada, sem medo de estar prestando um desserviço ao leitor e à saúde pública.

Quanto à pluralidade, é certo que há debates científicos que se opõem ao consenso e que, trazidos a público, estimulam o livre pensar. Quando o que está em jogo é a saúde pública, porém, o dissenso merece tratamento mais cuidadoso.

Além disso, a decisão de publicar qualquer texto usando a pluralidade como justificativa é apenas parte da história. A outra é que nem todo artigo de opinião é aceito para publicação na página 3 do jornal. Uma vez lá, no entanto, o selo conferido à mensagem sugere que ela é digna de entrar no debate público—o que nem sempre é verdade.

Muitos leitores me mandam textos para publicação e encaminho as sugestões para a seção Tendências / Debates ou para a editoria correspondente.

Para ficar em um exemplo mais recente, o ex-ministro Aloizio Mercadante pediu (e não levou) espaço para questionar a reportagem cujo título nas redes foi "Década colocou os negros na faculdade, e não (só) para fazer faxina”, e cuja façanha é não mencionar, em nenhum momento, que a Lei de Cotas foi aprovada no governo Dilma Rousseff.

O texto sobre a cloroquina foi mandado à ombudsman e encaminhado à seção Tendências / Debates. Teve mais sorte.

A decisão sobre o que é publicado na seção Tendências / Debates cabe à editoria de Opinião, ouvida a Direção de Redação. Entre os critérios para a escolha estão qualidade do artigo, relevância e oportunidade do tema e representatividade do autor—fatores que tornam a publicação do texto ainda mais intrigante.

Um dos grandes temas de 2020 foi o coronavírus, e a cobertura jornalística feita sobre ele teve bem mais acertos do que erros.

Se algo novo for descoberto em relação à eficácia de medicamentos contra a Covid-19, não tenho dúvidas de que a imprensa seguirá o achado de perto. Até lá, oferecer uma das maiores vitrines da Folha para um texto pouco esclarecedor parece uma tentativa de reestimular a controvérsia onde ela não existe e de colher mais um punhado de cliques.

*

Sobre a coluna da semana passada, o texto "Sensacionalismo na pandemia", a editora de Cidades da Folha, Luciana Coelho, diz o seguinte: “ A repórter ouviu duas pessoas por telefone e colheu outros dois relatos por redes sociais, um dos quais a autora confirmou por mensagem (a outra pessoa não respondeu à tentativa de contato). Ouviu também a PM, a Polícia Civil e a Anvisa, por mensagem e email. A checagem da foto não mostra que ela foi tirada no exterior—as agências de checagem usam uma foto diferente para fazer a mesma afirmação, com mão feminina e outro fundo. Como a suspeita é a de que a vacina em questão seja contrabandeada, o fato de as caixas serem iguais não permite inferir que a foto tenha sido tirada fora do Brasil. A busca reversa de imagem só atribui à foto o contexto descrito pela reportagem. Foi, sim, verificado um erro no título inicial, que não atribuía às fontes a afirmação. Ele foi corrigido com publicação de erramos”.

Aproveito para desejar um 2021 melhor para todos. Entro em férias e volto em fevereiro.

Erramos: o texto foi alterado

Versão anterior desta coluna errou ao afirmar que o texto enviado à ombudsman pelo ex-ministro Aloizio Mercadante foi encaminhado à seção Tendências / Debates. Na verdade, os destinatários foram os três editores do especial "Todo ano um 7 a 1 diferente" e a Secretaria de Redação. ​

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