É ator e escritor. Também é um dos criadores do portal de humor Porta dos Fundos.
Minha infância tem gosto de gordura hidrogenada e aroma artificial de fruta
A vantagem de ter crescido comendo industrializados é ter uma máquina de tempo no supermercado mais próximo de você
Já é assinante? Faça seu login
Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:
Oferta Exclusiva
6 meses por R$ 1,90/mês
SOMENTE ESSA SEMANA
ASSINE A FOLHACancele quando quiser
Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.
Um dos problemas de se ter crescido nos anos 1990 é que não há qualquer glamour no nosso saudosismo. Proust se lembra da sua infância ao comer uma madeleine —isso é o que dizem, que eu nunca li "Em Busca do Tempo Perdido", e nem vou ler porque já deram um spoiler. Sim, ao final, parece que ele não encontra o tal do tempo perdido.
O fato é que passei por uma experiência igualzinha à de Proust, com sua madeleine: comi uma iguaria que me proporcionou uma volta à mais tenra infância, e meus olhos se encheram de lágrimas. Infelizmente se tratava de um bolinho Ana Maria sabor baunilha. Algum dos seus ingredientes me teletransportou direto pro ano de 1992, e me pergunto se foi o propionato de cálcio, o ácido sórbico ou o acidulante ácido cítrico. De repente eu estava no pátio da escola, tomando um pescotapa, abrindo a merendeira escondido —e encontrando ali, todo amarfanhado, o consolo pra minha solidão.
Minha infância tem gosto de açúcar invertido com notas de tutti frutti e retrogosto de acidulante ácido cítrico. As cores da minha infância são o amarelo-Cheetos, o laranja-Fanta, o roxo-Grapette. Não há cheiro que me transporte pros meus seis anos com mais rapidez do que o aroma idêntico ao natural de morango —em nada idêntico, vale assinalar, ao aroma natural de morango.
Preferia mil vezes que me lembrasse da minha avó ao sentir o cheiro de um forno a lenha, mas o que traz minha avó de volta à vida é o sabor de uma Amandita, mais especificamente a textura oleosa que deixava na boca depois de deglutida, e que também atende pelo nome de gordura vegetal hidrogenada.
Lá em casa não entrava Amandita, considerada uma "porcaria" —ao contrário de nuggets e lasanha Sadia, e nunca vou entender os critérios. Minha avó não tinha essa frescura com porcaria —sua casa era o paraíso da Amandita, do biscoito maltado da vaquinha e do quase extinto Chocolícia —e a mera lembrança da palavra chocolícia acaba de umedecer meus olhos. Gostava especialmente do raro, porque muito caro, Chocookies. Lembro de pensar: quando crescer, quero ser rico, pra ter uma despensa cheia de Chocookies.
Cresci, e minha despensa só tem abacates, café e chocolate amargo. Crescer é se tornar aquilo que você mais despreza. Minha criança interior passaria fome em minha casa.
Mas a vantagem de se ter tido uma infância industrializada está na facilidade em encontrar sua máquina de tempo —ela está ali, à sua espera, na estante do supermercado mais próximo de você.
Receba notícias da Folha
Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber
Ativar newsletters