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Professor de história da arte na Unicamp, autor de “O Corpo da Liberdade”.

Wagner e Verdi ilustram a profunda relação entre música e política

Se o alemão era favorito dos nazistas, o italiano dá ânimo para lutar por um mundo mais justo

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Na planície pedregosa, à noitinha, mulheres e crianças fugitivas escondem-se num buraco. São a escória do mundo.

Foi assim que o diretor de cena Andrea de Rosa concebeu o início da ópera “Attila”, de Giuseppe Verdi. Há pouco, essa ópera, junto com “Le Trouvère” (a versão francesa de “Il Trovatore”), “Macbeth” e “Un Giorno di Regno”, compôs o programa que o Festival Verdi, de Parma, consagrou neste ano ao compositor.

É um festival, antes de tudo, inteligente. Busca obras ou versões esquecidas, que enriquecem a percepção de Verdi, cuja grandeza se revela por meio de todas as suas composições. O conjunto forma a mais complexa visão da humanidade.

“Attila” pode ser sentida como uma resposta a um Wagner que estava por vir. Data de 1846: nesse momento, da obra de Wagner que conta, havia só “O Navio Fantasma” e “Tannhauser”. Mas quando o personagem de Attila invoca Wotan, o supremo deus do compositor, é como se descortinasse o futuro.

Ainda mais que, em “Attila”, o rei dos hunos, que os germânicos incorporaram à sua cultura, encarna a barbárie, a tirania, a autoridade pela força e nada tem de super-homem heroico e positivo. 

Wagner e Verdi nasceram em 1813. Tiveram trajetórias paralelas. Tornaram-se gigantes da ópera. Não podiam ser mais diferentes, porém. Wagner construiu para seu uso próprio uma imagem de gênio ao qual a humanidade deve tudo. Encontrou no rei Luís 2º da Bavária um protetor que financiou a construção de seu teatro e de seu magnífico palácio com jardins, onde está seu túmulo.

Verdi lutou com a indústria da ópera de seu tempo. Viveu com o que lhe rendiam seus trabalhos. Comprou um sitiozinho perto de Parma, mantendo-se fiel à região onde nasceu. Ergueu um asilo em Milão para os velhos músicos, legando-lhe todas as rendas de seus direitos autorais, e pediu para ser enterrado ali. 

Escreveu: “Das minhas obras, a que mais me agrada é a casa que fiz construir para acolher os velhos artistas do canto que não foram favorecidos pela fortuna ou que não possuíram, na juventude, a virtude da poupança”. 

Aqui, o humanismo é comovente: os que dilapidaram seus ganhos não são culpados. Foram feitos assim. Na humanidade, existe quem economiza e quem joga dinheiro fora. Velhos, pobres e frágeis, são sempre nossos irmãos.

Quem é maior, Verdi ou Wagner? A essa pergunta, clássica e incômoda, é melhor dar a resposta prudente de Mário de Andrade: não se mede altura entre altíssimos. Dos dois, porém, Verdi oferece o acesso mais difícil.

Isso parece um paradoxo, mas não é. Wagner exige do ouvinte uma longuíssima passividade, uma embriaguez de ópio: basta dizer que seu “O Anel do Nibelungo” se desdobra por mais ou menos 15 horas e necessita de quatro récitas para se completar. O esforço para ouvi-lo é elemento importante dessa estética e de sua sacralização.

Verdi, ao contrário, estimula emoções violentas com efeitos breves e de impacto. Sua música é ativa, cheia de melodias boas de cantar e de lembrar. Esse material popular faz parte de sua estética. 

E aqui está a grande dificuldade: os melómanos-cabeça, os intelectuais desdenham essa facilidade de superfície, sem perceber que Verdi criou um mundo sonoro e reflexivo de infinita profundidade.

Sua música, para além do papel militante que teve nas lutas pela unificação da Itália, vai além do circunstancial. Põe em cena tiranos autoritários, religiosos intolerantes, mas ainda prostitutas, ciganos, negros, aleijados, escravos, para melhor nos revelar, fraterno, a humanidade dos excluídos. 

Obsessivo diante da dificuldade dolorosa de existir, evidencia os mecanismos sociais, violentos e injustos, que esmagam os vulneráveis. Verdi é um iluminista para quem a fraternidade constitui o mais forte dos valores.

Wagner era o compositor favorito dos nazistas. Ao contrário, Mussolini tinha desprezo pela ópera italiana. Woody Allen disse, numa piada, que a música de Wagner lhe dava ganas de invadir a Polônia. 

A música de Verdi nos dá ânimo para lutar por um mundo mais justo. Seu grande herdeiro espiritual foi Arturo Toscanini, o maestro dos maestros, também nascido em Parma, que se tornou o símbolo musical de resistência ao fascismo.

Nestes tempos sombrios em que violência, agressividade e punição erguem-se como valores, em que os preconceitos alimentam as pulsões mais infames, é importante voltar a Verdi. O Festival de Parma, com seu cuidado filológico em revelar suas obras mais secretas, é uma chama luminosa na escuridão espessa que cada vez mais envolve o mundo.

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