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Jornalista e escritor, é autor de "Carolina, uma Biografia" e do romance "Toda Fúria"

Descrição de chapéu Semana de 1922

Mário de Andrade e Di Cavalcanti foram os negros da Semana de 22

Ligados pela origem afro-brasileira, ambos os artistas merecem reconhecimento pela qualidade se suas obras

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A enxurrada de eventos alusivos ao centenário da Semana de Arte Moderna de 1922 só deixa de tocar na tecla da contribuição do artista e do escritor negros na passagem desta relevante efeméride. Além de ignorar o papel desempenhado por importantes afrodescendentes no evento, antes e depois da sua realização, a comemoração de um século transcorre glorificando apenas, como sempre, figuras carimbadas –caso de Oswald de Andrade—, que, embora tenham tido destaques à época, não foram os únicos protagonistas, bem como não realizaram nada sozinhas. Por que será que não dão destaque para os pretinhos da Semana de Arte Moderna?

Por conta disso, gostaria de destacar, inicialmente, dois nomes, que, no âmbito do sucesso do evento, foram primordiais para que ele chegasse ao cenário nacional como grande acontecimento literário e cultural.

O primeiro nome é do poeta e escritor paulistano Mário de Andrade, que viveu entre 1893 e 1945. Quando da realização da Semana, aos 29 anos, era bem conhecido do circuito da cultura e da literatura em São Paulo e no Brasil.

Retrato de Mário de Andrade pintado por Tarsila do Amaral em 1922 - Reprodução

O outro destaque é o pintor carioca Emiliano Di Cavalcanti (1897-1976), tido como o "mentor e criador" da realização efetiva na programação, que teve no Theatro Municipal de São Paulo o seu único e principal palco.

O que liga estes dois artistas geniais é o fato de eles serem de origem negra.

Mário de Andrade é velho conhecido dos leitores em geral, sobretudo porque ficou marcado pelo romance "Macunaíma", de 1928, 40 anos depois filmado por Joaquim Pedro de Andrade, tendo Grande Otelo desempenhando o papel título.

Detentor de vastíssima obra literária e ensaística, foi musicista, pesquisador da cultura popular brasileira, folclorista, inspirado poeta, romancista, compositor, professor e homem público notável, tendo no seu currículo o que se conhece hoje como a Secretaria de Cultura do município, da qual foi seu primeiro gestor. Sua carreira literária inicia-se em 1917 com a publicação do livro "Há uma Gota de Sangue em Cada Poema", que tem forte dicção simbolista, com influência do poeta catarinense Cruz e Sousa, considerado o pai do simbolismo no Brasil.

Já Di Cavalcanti vem de uma linhagem de grandes tribunos e escritores, entre os quais seu tio, o abolicionista José do Patrocínio, e o cronista João do Rio, ou Paulo Barreto. O primeiro empreendeu sérias inovações no jornalismo brasileiro e, por meio do jornalismo literário, ao publicar dois romances reportagens –"Mota Coqueiro ou a Pena de Morte" e "Os Retirantes". Certamente João do Rio, outro negro genial, é o precursor da reportagem moderna, investigativa, que introduz conceitos novos de apuração, colhida diretamente da "fonte", que daria muita popularidade e milhares de leitores a ele —hoje isso seria traduzido em seguidores, como os das redes sociais. Ao contrário de Patrocínio, João do Rio morreu às vésperas da realização da Semana.

Di Cavalcanti e Mário de Andrade, ambos na categoria de mentores e criadores, merecem tratamentos dignos pelos papéis que desempenharam, portanto. É bem estranho que não se revisite, à altura do seu mérito, a obra de Mário de Andrade, bastante discutido pelo viés da sua "homossexualidade". O mesmo se dá com Di Cavalcanti. O pintor carioca, entre 1916 e 1917, era acadêmico da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco quando estreitou seus laços com a cidade de São Paulo e conheceu Mário e Oswald, sendo criador do convite e do catálogo da Semana, onde expôs 11 obras.

A Semana jamais sairia de sua mente e de seu coração. Por exemplo, em 1930, com outros dois amigos, fundou no Rio de Janeiro o Clube dos Artistas Modernos. Como artista plástico, ilustrador (ilustrou o livro "Carnaval", de Manuel Bandeira), jornalista e escritor, sua obra merece ser revisitada. Morto em 1976, Glauber Rocha, o moderno do cinema novo, realiza o documentário "Di-Glauber", filmando o artista deitado no caixão.

Mário de Andrade, que sempre teve muita ligação com o Rio, onde chegou a residir, era visto por Menotti del Picchia, outro participante da Semana de 22, como "papa do novo credo", enquanto Oswald de Andrade era descrito como espécie de "bispo" do movimento, ou seja, numa ordem bem inferior.

Não há como negar a importância de Di e Mário em parte e no todo da Semana de Arte Moderna, que vai muito além de fortalecimento de uma ponte, ligando sua origem entre Rio e São Paulo. Na capital do país, morreria, em novembro de 1922, o romancista Lima Barreto, que embora autenticamente moderno, seria ignorado pela Semana de São Paulo. Chegou a escrever dois artigos contra a mesma na revista Careta: "O Futurismo", em julho de 1922, e "Esthetica do ‘Ferro’", em agosto do mesmo ano, criticando a revista Klaxon, órgão literário dos modernistas e aludindo ao poeta português Antônio Ferro, que circulava também nas suas páginas.

Em trecho do artigo de julho, ironicamente, diz Lima: "São Paulo tem a virtude de descobrir o mel do pau em ninho de coruja. De quando em quando, ele nos manda umas novidades velhas de 40 anos". Por essas e outras razões, explica-se a aversão dos paulistas ao romancista carioca. Em todo caso, Lima nasce e morre com o modernismo, com forte braço em São Paulo, por intermédio de Mário e Oswald de Andrade, e mentoria e criação no Rio de Janeiro, através de Di Cavalcanti.

Ainda no Rio, dois outros poetas de sangue negro e de grande expressão literária vão atuar para consagrar ainda mais o modernismo entre os cariocas: Jorge de Lima, que viveu entre 1893 e 1953, modernista-tradicionalista, com "O Mundo do Menino Impossível" e "Essa Nega Fulô", e Cassiano Ricardo, nascido em 1895 e morto em 1974, fundador da revista "A Novíssima", em 1924, e autor de uma espécie de "Macunaíma" em versos, o poema "Martim Cererê", de 1928, mesmo ano da publicação do livro polêmico, mas clássico, de Mário de Andrade.

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