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Bolsonaro 'perde horizonte da ética' ao incentivar garimpo, diz novo cardeal

Para dom Leonardo Steiner, governo tem colaborado com destruição ambiental e agride TSE ao desacreditar as urnas

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São Paulo

O governo Jair Bolsonaro perde "o horizonte da ética nas relações" quando se alia ao garimpo ilegal e comete uma agressão "ao desacreditar a Justiça Eleitoral", diz à Folha dom Leonardo Steiner, novo cardeal brasileiro. E nada disso é boa notícia para a democracia.

Dom Leonardo, 71, é cauteloso com as palavras, mas suas críticas ao presidente não passam batidas.

No fim de maio, o papa Francisco anunciou a entrada no Colégio dos Cardeais do catarinense de Forquilhinha, onde também nasceram os irmãos Zilda Arns (fundadora da Pastoral da Criança) e dom Paulo Evaristo Arns. Dom Paulo Cezar Costa, arcebispo de Brasília, também está na lista. Os dois devem participar do conclave que escolherá o sucessor do pontífice.

Em entrevista por escrito, dom Leonardo, desde 2020 à frente da Arquidiocese de Manaus, defende povos indígenas, meio ambiente e a maior participação de católicos na vida partidária. "A política deve voltar a ser assunto nos bares, nas escolas, na universidade, na pastoral", afirma.

O que significa a nova leva de cardeais indicados pelo papa, com muitos nomes fora do eixo europeu? Vai revelando o rosto católico da Igreja. Uma universalidade que deverá estar sempre mais presente. Demonstra o desejo de uma Igreja sempre mais inserida, mais colorida, assumindo as sementes da presença do Deus em encarnado nas diversas culturas.

Como a Igreja pode ser uma bússola em tempos tão polarizados? A bússola é o Evangelho que ela busca anunciar e viver. A polarização em si não é o problema. O problema está nas ideologias fechadas, combativas, não dialogantes. Uma ideologia que aparentemente defende uma posição, mas está defendendo interesses financeiros, dominadores, mercantilistas. Camufla no dizer o que está buscando como poder. Aparece como polarização, mas escamoteia os interesses de fundo, de dominação.

Dom Leonardo Ulrich Steiner, 71, novo cardeal brasileiro - Alan Marques - 15.fev.2015/Folhapress

O sr. é uma voz da Igreja para questões amazônicas. Como vê a visão do governo Bolsonaro sobre o garimpo ilegal? Deveria ser uma voz! Estou há pouco tempo na Amazônia e devo me inserir melhor na realidade para ser uma voz. Bispos, presbíteros, religiosos/as, os leigos e leigas têm ajudado no fazer ver as questões gritantes como garimpo, violência, saúde, poluição. O garimpo é a agressão do meio ambiente e, por isso, da casa dos povos indígenas, da nossa casa comum. O garimpo está destruindo as águas. O mercúrio é uma maldição! Para os donos do garimpo, não importa a vida dos outros, as pessoas, os povos. O que importa é o ouro, o dinheiro. Nada mais interessa. O governo tem colaborado nessa destruição, pois poderia proteger, mas não fiscaliza, não protege, ataca as instituições. As atitudes e falas têm incentivado o garimpo e deixado comunidades indígenas desprotegidas. Perdeu-se o horizonte da ética nas relações e, por isso, a justiça.

A Igreja Católica vem perdendo fiéis e passa por uma crise após tantas acusações de abuso sexual envolvendo seu clero. Como contornar esse quadro? É sempre melhor não contornar. Sábio é aquele que se senta, reflete, questiona, reza, pede ajuda à ciência e busca as causas, sem medo de ver a verdade. Diz são Paulo, mais ou menos assim: quando sou fraco, sou forte. Encontrar nas fragilidades as forças para caminhar. Isso vale para a evangelização, para a pertença à Igreja, também para o abuso contra menores. Na evangelização, provavelmente faltou profundidade na catequese, na iniciação à vida cristã. Faltou a Palavra de Deus como itinerário da fé. A Igreja tem buscado caminhos, não para aumentar o número de fiéis, mas para demonstrar a beleza, a grandeza de ser cristão.

Por que o avanço evangélico no Brasil é tão forte, a ponto de ameaçar a maioria católica? Isso é uma questão para a Igreja? É uma questão na medida em que nos perguntamos o que estamos oferecendo aos fiéis. O que não se noticia é o número crescente no Brasil e no mundo dos que afirmam não ter religião. E o fenômeno tem um caminho: pessoas que vão para uma igreja, depois para outra e depois para outra, e acaba desacreditando na força do Evangelho deixando de participar em uma igreja. Mais preocupante é que perdem a dimensão da verdade da religião. Entra numa espécie de indiferença religiosa. É que a fé é anterior à religião com seus ritos, dogmas, moral. Até que ponto estamos tentando despertar para a fé, e não para a religião? Há uma exigência de reflexão e diálogo, não de condenação e desprezo.

Evangélicos formam uma das frentes mais fortes do Congresso. Existe uma bancada católica, mas pouco se fala dela. O sr. já defendeu a presença dos católicos na política. Como fazer isso acontecer? E continuo a incentivar. O cristão deve participar da política e da política partidária. Todos nós participamos da política, mas na Igreja Católica os ministros ordenados não se filiam a partidos nem defendem uma ideologia de partido. Estamos numa situação difícil, pois se atacou a política de tal forma que a concepção que se tem de política virou sinônimo de corrupção, de conchavo. Tenho a impressão de que, se a democracia funcionar mal, os lucros podem ser maiores. Depois de alcançar a democracia, tendo passado pela ditadura, a sociedade deixou de discutir e educar para a política. A política deve voltar a ser assunto nos bares, nas escolas, na universidade, na pastoral.

As atitudes e falas [de Bolsonaro] têm incentivado o garimpo e deixado comunidades indígenas desprotegidas

Dom Leonardo Steiner

cardeal

A Igreja foi muito presente na política brasileira até os anos 1980. Por que esse espaço encolheu? Com a proclamação da República, veio a realidade do Estado leigo. Mas isso não significou o silêncio da Igreja. Mesmo porque deputados, presidentes, senadores, governadores, prefeitos, vereadores na sua maioria eram ligados à Igreja Católica ou a [outras] igrejas. Nesse sentido, continua presente. No tempo da ditadura, a Igreja era o espaço onde havia liberdade de discutir política, apesar de várias pessoas da Igreja terem sofrido perseguição. A Igreja foi acusada de se imiscuir na política. Ela teve o cuidado, pelo menos as históricas, de não usar o poder da religião para eleger os seus membros e depois criar bancada.

O sr. já fez críticas públicas a Bolsonaro. Como avalia o governo dele até aqui? As observações —se desejar, as críticas, no sentido etimológico da palavra— se referem às ações de governo. Participei de uma sessão no Supremo Tribunal Federal em que se reafirmava a importância do Judiciário. Na ocasião foi-me oferecida a oportunidade de externar, em nome da presidência da CNBB, a importância do STF. O mais grave é destituir as instituições de seu valor. O mesmo poderíamos dizer quando o Congresso deixa de ser a Casa do Povo para ser a casa de interesses de bancadas. Poderíamos até perguntar onde os pobres encontram guarida, são participantes da ação política?

A Igreja teve papel essencial no combate à ditadura militar. Hoje, Bolsonaro insiste num discurso de desmoralização das urnas eletrônicas. A Igreja e a CNBB vão se posicionar? O Tribunal Superior Eleitoral mostra com frequência a garantia das urnas eletrônicas. Se não houvesse essa manifestação, a CNBB já teria se manifestado. A maior agressão, no meu modo de ver, é desacreditar a Justiça Eleitoral. Agredir a instituição responsável pela lisura da eleição. Os ministros demonstram equilíbrio, não se deixando levar pelos ataques. Permanecem na tranquilidade de quem sabe o que está fazendo pelo Brasil: garantir eleições limpas, preservar a democracia.

É importante que a Igreja marque posição contra algum candidato que considere nocivo ao país? As observações e críticas são manifestas antes das eleições. Ela não tem indicado candidatos e candidatas. Ela manifesta uma posição quando oferece orientações para votar bem, ser eticamente coerente.

Temas da ordem moral, como aborto e causas LGBTQIA+, têm polarizado a sociedade. O fundamento da moral é o amor deixado por Cristo: eu vos dou um novo mandamento. Um amor que ultrapassa a simpatia, as relações conflituosas. Um amor que não tem inimigos. Todos somos filhos e filhas de Deus, independentemente de ações, contradições, expressões sexuais, belezas, deficiências físicas e de espírito. A vida humana deve ser cuidada desde o seu início. O início de uma vida significa um vir a ser filho ou filha de Deus. Talvez o tema de ordem moral hoje deveria ser a questão da guerra e dos pobres. Há quase desprezo pela vida humana.

No Sínodo da Amazônia, em 2019, ventilou-se a possibilidade da ordenação de mulheres no diaconato. Por que ela não foi para frente? As mulheres coordenam grande número de comunidades, e a elas foram confiados ministérios não ordenados. Em determinadas regiões, celebram o batismo. A questão que se coloca, e que está sendo pesquisada e refletida, é se o diaconato para mulheres existiu na Igreja e se havia ordenação. Para encaminhar a questão, o papa constituiu uma Comissão que deverá apresentar as conclusões.

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