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Andre Pagliarini

Aliança de religiosos com a direita molda política brasileira desde a ditadura, sustenta historiador

Livro descortina papel de católicos e evangélicos do país no conservadorismo cristão mundial

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Andre Pagliarini

Professor de história no Hampden-Sydney College, na Virgínia (EUA)

[RESUMO] Em livro, historiador analisa a trajetória do ultraconservadorismo cristão que vem dando suporte ao projeto político da direita nas Américas. Do anticomunismo ferrenho da Tradição, Família e Propriedade durante a ditadura ao apoio majoritário de evangélicos a Bolsonaro em 2018, o Brasil é um elo fundamental desse fenômeno.

Não são poucas as atitudes, concepções e figuras bizarras ligadas ao bolsonarismo que nos fazem perguntar como chegamos aqui de forma tão abrupta. Acompanhando os acontecimentos políticos dos últimos anos no Brasil, às vezes nos sentimos como Rip van Winkle.

No conto publicado por Washington Irving em 1819, Van Winkle é um fazendeiro preguiçoso, que passa mais tempo no bar que no campo. Certo dia, para não ouvir desaforos da esposa, ele sobe uma montanha para tirar uma soneca. Ao acordar, percebe que se passaram 20 anos. Sua casa está em ruínas, sua esposa, morta, e seus filhos, crescidos.

Para os outros, o tempo foi passando no ritmo normal. Para ele, contudo, o mundo mudou repentinamente, causando um espanto profundo.

Homem envolto em bandeira do Brasil de joelho em frente ao Palácio da Alvorada
Apoiador evangélico do presidente Jair Bolsonaro reza em frente ao Palácio da Alvorada, em Brasília - Pedro Ladeira - 28.abr.20/Folhapress

A verdade é que, longe dos holofotes, forças ultraconservadoras vêm trilhando há muito tempo o caminho exitoso da chamada nova direita, que conquistou o Brasil três anos atrás. Basta uma perspectiva histórica para entender o obscurantismo desvairado que hoje governa o país.

Para isso, o novo livro do historiador Benjamin Cowan é fundamental. Em “Moral Majorities Across the Americas: Brazil, the United States, and the Creation of the Religious Right” (maiorias morais nas Américas: Brasil, Estados Unidos e a criação da direita religiosa), Cowan, professor na Universidade da Califórnia em San Diego e um dos jovens brasilianistas mais proeminentes, revela as articulações de um movimento ultraconservador hemisférico que, desde os anos 1930, vem impulsionando o poder político da direita nas Américas.

No Brasil, grupos como a Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade (TFP) e a Sociedade de Estudos Políticos, do integralista-mor Plínio Salgado, formularam uma visão conservadora, conspiratória e de escopo civilizacional. Para o autor, essa abordagem ajudou a fazer do país um elo central no caldo ideológico do qual surgiu a nova direita como fenômeno transnacional.

Cowan insiste na variedade das direitas. Imaginemos, por exemplo, a panóplia de interesses conservadores no governo Bolsonaro, que no primeiro momento contava com a atuação de, entre outros, Ernesto Araújo e Ricardo Salles.

Cada um tinha vocabulários, prioridades e histórias diferentes, mas eles se uniam em torno do projeto bolsonarista de poder, uma agenda antes de tudo antiprogressista.

Nota-se também o poder aglutinador do autoproclamado filósofo Olavo de Carvalho, cujos vídeos no YouTube e textos repletos de referências esotéricas deram um ar de intelectualidade ao discurso extremista do bolsonarismo.

Por sua parte, os grupos que o historiador estuda montaram alianças na base de “um antimodernismo que definia seu senso de ‘moderno’ ao se opor ao comunismo, ao ecumenismo, à secularização e à perda da ordem moral, bem como ao cerco aparente contra hierarquias e desigualdades tradicionais enraizadas em disparidades justas e sobrenaturais”.

É nesse discurso, segundo Cowan, que podemos enxergar o cerne da política reacionária tão difundida hoje, aquela “que ridiculariza os direitos humanos, o globalismo, a cooperação internacional, os movimentos sociais e a justiça redistributiva como conspirações”.

No primeiro capítulo, o autor trata da reação conservadora ao Concílio Vaticano 2º. Realizado entre 1962 e 1965 com o intuito de modernizar a Igreja Católica e atrair desafetos, o papa João 23 convidou bispos de todo o mundo para debates e votações na Santa Sé, que introduziram mudanças.

No que talvez tenha sido a novidade mais importante, as missas passaram a ser celebradas na língua do país em que ocorriam, e não mais exclusivamente em latim, o que tornou os ritos mais acessíveis para católicos mundo afora.

Nos costumes, no entanto, o concílio promoveu poucas mudanças. A Igreja Católica manteve o celibato para os padres e a proibição do sexo antes do casamento. Ainda assim, ultraconservadores viam o ímpeto modernizante como uma ameaça.

Cowan ressalta especialmente o trabalho de dois bispos brasileiros —Geraldo Proença Sigaud e Antônio de Castro Mayer— que, com aliados na TFP, visavam minar as tendências reformistas.

Sigaud e Mayer começaram a trabalhar juntos nos anos 1930, colaborando frequentemente com Plínio Corrêa de Oliveira, que fundou a TFP em 1960. Os três se tornariam figuras relevantes na história do conservadorismo mundial.

Mesmo assim, o autor aponta, raramente recebem a devida atenção de estudiosos. Fala-se muito do ativismo progressista da Igreja Católica no Brasil —as comunidades eclesiais de base, que tiveram um papel central na formação do PT, são um emblema.

O historiador, porém, relata o trabalho de brasileiros tradicionalistas que também se organizaram para influenciar os rumos do catolicismo.

Em 1960, Sigaud, Mayer e Oliveira lançaram “Reforma Agrária: Questão de Consciência”, um livro intensamente anticomunista que conclamava uma renovação católica e denunciava propostas de redistribuição de renda.

É impossível ler sobre o livro e não pensar nas bravatas apocalípticas de Olavo de Carvalho e seus discípulos. No ano passado, por exemplo, o ex-chanceler Ernesto Araújo reclamava em seu blog do “jogo comunista-globalista de apropriação da pandemia para subverter completamente a democracia liberal e a economia de mercado, escravizar o ser humano e transformá-lo em um autômato desprovido de dimensão espiritual”.

Em tons semelhantes, o prefácio do livro de Sigaud, Mayer e Oliveira anunciava um viés “radicalmente contra a avalanche neopagã do socialismo, minando nosso patrimônio espiritual luso-cristão”.

Cowan nota que esse manifesto repercutiu bastante no início dos anos 1960, período de intensa mobilização e polarização política no Brasil.

Com isso, juntaram uma polêmica de direita com a legitimidade austera da religiosidade e chegaram às manchetes como representantes do conservadorismo social e político baseado no tradicionalismo católico. O pesquisador argumenta que suas atividades tiveram repercussão internacional significativa, ajudando a moldar a reação cristã global à modernização.

Em seguida, Cowan se concentra nos evangélicos, perguntando por que esses cristãos mais e mais numerosos ao longo das últimas décadas se engajaram tanto na vida política. “Ao mesmo tempo que os evangélicos começaram a abandonar seu apoliticismo e entrar formalmente na política”, ele escreve, “o regime militar do Brasil se afastou da Igreja Católica para encontrar novos aliados entre os protestantes de direita”.

Como mostrou em seu primeiro livro, “Securing Sex: Morality and Repression in the Making of Cold War Brazil”, a ditadura frequentemente misturava questões de “segurança” com a pauta de costumes que passava por mudanças profundas.

Nesse contexto, evangélicos conservadores chegaram a compartilhar uma linguagem particular de crise moral com membros poderosos da ditadura, que por sua vez reconheceram e apoiaram aliados da comunidade protestante.

“A aliança dos evangélicos com o regime remodelou, assim, a política do Brasil durante a ditadura; talvez mais importante, esse novo eixo regime-religioso, baseado na moralidade, no anticomunismo e na oposição ao cristianismo de esquerda, marcou os anos de formação e, em última análise, a forma da atual democracia no Brasil.”

Cowan não trata os evangélicos como uma massa homogênea, muito pelo contrário. Uma das preocupações centrais do livro é a “estrada não tomada” da via evangélica progressista que parecia estar emergindo no Brasil nos anos 1960 e 1970.

O historiador sustenta que existia, no Brasil da ditadura, um mundo cristão de esquerda em formação —no entanto, “esse mundo nunca realmente emergiu, certamente não de uma forma tão influente quanto o da direita cristã”.

Aqueles cristãos que eventualmente formariam a “âncora direitista da bancada evangélica” abraçavam um anticomunismo ferrenho, o apoio a regimes autoritários e um relativo descaso com as questões de justiça social durante a ditadura. O mais grave é que, “na perspectiva dos conservadores e do regime, os evangélicos progressistas não abraçavam o anticomunismo abrangente que sustentava a coesão da direita”, diz o historiador.

Quando um jornal para jovens metodistas reclamava “do mundo em que vivemos” no início dos anos 1980, por exemplo, os problemas citados tinham a ver com questões estruturais —pobreza, imperialismo, elitismo, ingerência governamental. O anticomunismo nem sequer foi mencionado como prioridade.

O autor examina diferenças entre evangélicos de várias denominações, buscando entender a razão da evolução política dessa população com tanta importância no Brasil contemporâneo.

Em um contexto de ascensão ultraconservadora, é importante ressaltar que existem organizações cristãs progressistas no Brasil hoje, mas sem a influência de líderes como Silas Malafaia ou Edir Macedo.

Vale lembrar que, de acordo com estimativas a partir de pesquisa Datafolha, Jair Bolsonaro obteve 11 milhões de votos a mais que Fernando Haddad entre o eleitorado evangélico de diversas denominações em 2018, enquanto o petista venceu entre adeptos de religiões afro-brasileiras, sem religião, ateus e agnósticos. Entre os católicos, a vantagem de Bolsonaro foi de pouco mais de 1 milhão de votos.

De acordo com Cowan, não há como entender esse resultado sem analisar a potencialização do protestantismo brasileiro pela direita. No passado, segundo ele, o principal racha entre evangélicos de esquerda e de direita foi a questão do ecumenismo, cujo rechaço pela direita cristã ultraconservadora eventualmente facilitou uma rejeição mais ampla à diversidade, ao pluralismo, e, em alguns casos, à própria democracia.

O livro insere o Brasil em um contexto maior de movimentos reacionários ao redor do mundo, todos movidos por uma aversão visceral às pautas progressistas. O ponto forte da obra é a forma em que o autor traz à tona os vários mecanismos de diálogo e colaboração entre forças da direita cristã nas Américas ao longo do último século.

Enquanto católicos e evangélicos progressistas reclamavam que seus colegas estavam tendo dificuldades em obter vistos para ir ao Brasil em meados dos anos 1970, visitas da direita religiosa “eram bem-vindas e até incentivadas”, Cowan relata, ilustrando apenas uma maneira em que o governo colaborava com o projeto político da direita cristã.

Fundamentalmente, é disto que a obra trata: a história do conservadorismo religioso ao longo do século 20, uma história em que a modernização e o ecumenismo prenunciariam a ruína de preceitos doutrinários consagrados pelo tempo.

Essa sensação de calamidade iminente chegou a unir católicos e protestantes de direita em todo o Brasil e no mundo ao longo do século passado.

No entanto, está bastante claro que essa história não ficou para trás. O trabalho de mobilização dessas forças ultraconservadoras rendeu frutos, ajudando a eleger Bolsonaro em 2018. Resta ver qual será o próximo capítulo desse drama político travestido de embate metafísico.

Moral Majorities across the Americas: Brazil, the United States, and the Creation of the Religious Right

  • Preço R$ 389 (304 págs); R$ 130 (ebook)
  • Autor Benjamin Cowan
  • Editora The University of North Carolina Press
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