Victor Hugo e Flaubert são decepções para diário dos Goncourt
Livro feito a quatro mãos pelos irmãos Jules e Edmond chega com trechos selecionados das 4.500 páginas do original
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No mesmo dia em que publicam o primeiro romance, os irmãos Jules e Edmond de Goncourt decidem começar um diário. Até aí tudo normal –a febre da escrita íntima se alastrava pela França em meados do século 19. Escritores como Stendhal e escritoras como Madame de Staël mantiveram por toda a vida cadernos que, postumamente, foram editados em livro.
Com o passar dos anos, o interesse pelo dia a dia e pelo mundo interior das celebridades literárias chegou inclusive a ofuscar as obras que os diaristas publicaram em vida. É o caso dos Goncourt. Quase ninguém mais lê suas peças teatrais e relatos, mas o diário ainda é comentado, traduzido e segue angariando leitores.
Para a edição brasileira, Jorge Bastos selecionou e traduziu uma pequena, mas representativa, parcela das 4.500 páginas do original. É um livro excêntrico, diferente dos diários oitocentistas. Como pode o diário, gênero pessoal por excelência, ser feito a quatro mãos?
“O manuscrito todo foi escrito por meu irmão a partir de um ditado a dois”, Edmond registra após a morte de Jules, quando se incumbe dos cadernos. A natureza do material estimulava a parceria. Não são confissões privadas o que temos aqui, mas cenas da vida exterior, da sociabilidade letrada.
Com ouvidos atentos e a pena afiada, os Goncourt tomavam notas do que observavam no Magny e no Le Brébant —redutos da boemia literária— ou nos salões da princesa Mathilde Bonaparte. São ótimos retratistas. Não espanta que tenham iniciado a carreira como pintores.
O sarcasmo e a inclinação zombeteira comparecem a todo instante, e os irmãos não aliviam nem mesmo para os amigos. Flaubert é “áspero, pesado, forçado”, Sainte-Beuve é “um sátiro triste e insatisfeito”, George Sand, “uma nulidade”, Zola “é realmente de dar pena”.
Em linhas gerais, exceção feita à hora da morte, os escritores são pintados como uma gente vaidosa, vingativa, que só anda em bando e é intimada duas vezes por dia para duelos. Tudo bem divertido, em suma. Ao menos para quem lê.
Quando não estão em noitadas ou envolvidos com os rigores da obra, Jules e Edmond mergulham nas novidades literárias. Seus juízos soam heréticos hoje em dia —por isso mesmo são do maior interesse. Livros que enxergamos como clássicos inatacáveis são descritos como imperfeitos, mal-acabados.
“É uma grande decepção 'Os Miseráveis'”, de Victor Hugo. “Nada respira: os personagens são de bronze, de alabastro, do que for, mas não de carne e osso.” Nem Flaubert passa ileso. “Originalidade no orientalismo de Flaubert? Nenhuma! No máximo esperteza laboriosa aplicada.”
Admirado e invejado, “exemplo claro da inferioridade do homem em relação à obra”, Flaubert é o grande personagem dos Goncourt. Gigante com “voz de búfalo”, sempre “batendo com a cabeça no pingente do lustre, agitado e falante”, ele encarna a “religião da literatura” que os irmãos, devotos fanáticos, não se cansam de professar nos cadernos.
“É o Ego erigido como culto”, um crítico escreveu, acertadamente, sobre as entradas que Edmond, já velho, publica nos jornais. A repercussão é imensa, amizades são desfeitas, portas se fecham, ele teme processos. Mas o egotismo, aqui, não é um traço pessoal, e sim a marca distintiva da confraria que os irmãos integram.
Como bons apóstolos, o que buscam com a ascese diária é gravar para a posteridade a voz de profetas narcisistas. Reunidos no Magny ao redor de uma mesa, eles repelem os pecados da vida burguesa, exorcizam a vulgaridade, esconjuram a mesmice.
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