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Silas Martí

Bunda de Dado em 'Malhação' abriu nova era para a TV aberta

Novela que agora chega ao fim foi a que melhor traduziu o drama de 'high school' para a realidade brasileira

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O mundo, de repente, era outro. Nada mais podia competir com o bumbum do ator Cláudio Heinrich, o sereno professor Dado da primeiríssima temporada de "Malhação". Quando a série, ou novela teen, estreou na Globo em 1995, toda uma geração, a minha, dos nascidos na década de 1980, parecia ter crescido em instantes. Já pouco importavam as intrigas de Nino e companhia no brilhante "Castelo Rá-Tim-Bum" ou as viagens de Lucas Silva e Silva a seu "Mundo da Lua" a três canais de distância no controle remoto da TV em São Paulo.

Cláudio Heinrich no papel do professor de artes marciais Dado, em 'Malhação' - Acervo/TV Globo

Sim, o episódio de estreia da série que se passava numa academia de ginástica no Rio de Janeiro já vinha com um nude do ator em pleno banho aos amassos com uma aluna, veja só. Mais tarde, ele ficaria famosíssimo como o índio loiro de "Uga Uga", hoje candidato certeiro ao cancelamento. Mas pouco importava. Falamos de uma época pré-redes sociais, quando coisas como lugar de fala e apropriação cultural eram conceitos inimagináveis, alienígenas talvez.

"Malhação", que acaba de chegar ao fim depois de quase três décadas de muito drama adolescente, ferro puxado, trocas de cenário, movimentos sísmicos na sociedade e, claro, à sombra do advento do admirável e assustador mundo mediado pelo TikTok, abriu uma porta antes impensável na tela da TV brasileira —não era uma novela, não era uma série, não era para crianças nem donas de casa indecisas sobre a marca de sabão em pó ou amaciante.

O adolescente, esse ser também alienígena, passava a se ver refletido num espelho na TV todo fim de tarde. É certo que "Confissões de Adolescente", outro clássico da TV Cultura, veio antes. Mas tudo na tela do maior canal do país ganha outra dimensão.

O seriado da Globo traduziu com marra e tintas cariocas o clássico drama de "high school" que vendeu muito cereal na TV americana, desde "Anos Incríveis" às sitcoms "Saved by the Bell" —que aqui chegou como "Galera do Barulho"—, "Um Maluco no Pedaço" e "Boy Meets World", ou "O Mundo É dos Jovens".

O twist, digamos, de "Malhação" foi trocar o cenário de armários enfileirados em corredores anódinos por longas sequências do vaivém de coxas, braços, peitorais e glúteos nas esteiras e bicicletas, sem contar o corpo a corpo do judô do professor Dado.

Adolescentes às voltas com o próprio corpo em transformação ali tinham o corpo exposto numa vitrine a cada tarde. Vale lembrar que o despudor ainda reinava no país —a Globeleza dançava nua nas vinhetas de Carnaval da Globo, e Hans Donner, então ainda o mago visual do canal, enchia de peladas as aberturas das novelas em todos os horários.

Não é que "Malhação" fosse hipersexualizada. Em comparação com os sucessos teen da era do streaming, de "Elite" a "Euphoria", com suas orgias e cenas de nudez explícita, parece até feita para crianças.

O ponto é geracional. Adolescentes não frequentavam muito a televisão do país até então e aqueles jovens vidrados na academia de ginástica foram os primeiros a nascer na era da redemocratização, experimentavam a delícia de uma classe média já acostumada com a estabilidade da moeda e o fim da hiperinflação. O horizonte que se descortinava ali era de um país no mínimo interessante e cheio de corpos sarados a desfilar.

Muitos desses corpos, de fato, vingaram na TV —de Caio Castro a Cauã Reymond, de Débora Falabella a Marjorie Estiano. Tudo parecia mais colorido. Digo isso pensando que esses ídolos teen, sem dúvida representando personagens sempre mais novos que a idade real estampada no RG, fizeram muitos jovens tirar dúvidas sobre a própria sexualidade naqueles tempos paleozoicos de internet discada.

Outro rostinho que vingou, mas numa seara mais infeliz, é o de Mario Frias, galã saído da novelinha para o filme de terror que é a gestão cultural do atual governo Bolsonaro.

É certo que "Malhação", ao longo de suas 27 temporadas, foi refletindo os rumos do país. Da era FHC aos anos Lula e Dilma, o interregno de Temer e agora Bolsonaro, muita coisa mudou e o hábito de ver televisão já é outro. Jovens não veem TV aberta, parece, e buscam séries mais realistas e menos ingênuas no streaming.

O fim da série da Globo e as bobagens disparadas no Twitter por Mario Frias todos os dias são sintomas do desfecho de um ciclo. Não somos mais jovens, muito menos ingênuos ou inocentes. Aquele país de calção, corpo aberto no espaço já não existe mais. E não é o calor que provoca arrepio.

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