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Descrição de chapéu The New York Times

Covid-19 divide opiniões de leitores e escritores como tema na literatura ficcional

Se a realidade dura pode afastar o público, nomes como Isabel Allende e Ian McEwan veem abordagem como inescapável

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Nova York | The New York Times

Há 12 anos, Sigrid Nunez publicou "Salvation City", um romance sobre um menino cujos pais morrem de uma misteriosa doença respiratória. Ela conjurou um país que existia no futuro próximo mas parecia uma distopia distante, e no qual um vírus que se difunde rapidamente desordena a sociedade dos Estados Unidos, com o fechamento de escolas, o desaparecimento dos estoques de álcool, desinfetante e máscaras cirúrgicas, a falta de respiradores em hospitais onde o pessoal é insuficiente, e o surgimento de novas variantes do vírus que fazem com que o número de contágios dispare e depois volte a recuar, em ondas.

A escritora Sigrid Nunez - Marion Ettlinger

Nunez, que baseou sua doença fictícia na gripe espanhola de 1918, calculou que "Salvation City" seria seu único romance passado em uma pandemia.

Mas a história se repetiu, e ela descobriu que não há como evitar o tema. No começo do ano passado, confinada em seu pequeno apartamento na parte sul de Manhattan, ela começou a escrever um romance sobre uma mulher que está morando em Nova York durante a primeira onda de contágio pelo coronavírus, e que começa a perder o controle dos nervos devido ao medo e incerteza implacáveis.

"Parecia cedo demais para escrever sobre a pandemia que estávamos vivendo, mas também parecia difícil escrever sobre qualquer outra coisa", disse Nunez. "Se a história se passa agora, a pandemia precisa ser parte dela".

Mais de dois anos depois do início de uma crise mundial de saúde que mudou a sociedade e a vida cotidiana, a Covid-19 está deixando uma marca inexorável na ficção literária. Em novos livros, autores célebres como Anne Tyler, Ian McEwan, Isabel Allende, Louise Erdrich e Roddy Doyle estão tratando, às vezes relutantemente, das reverberações psicológicas e emocionais da pandemia.

Muitos dos novos romances que têm a pandemia como tema buscam capturar a vida cotidiana na era da Covid-19: o efeito corrosivo do isolamento, o tédio e monotonia dos lockdowns e quarentenas, o desgaste nos relacionamentos, a maneira pela qual o vírus alterou as interações casuais e separou algumas famílias, enquanto unia outras.

A pandemia também apresenta novos percalços narrativos e artísticos. Alguns escritores se preocupam com a possibilidade de que uma trama que envolva a pandemia afaste leitores que desejam escapar de nossa soturna realidade, mas ignorá-la pode parecer chocantemente irrealista.

Outros imaginam se não é cedo demais para recriar a atmosfera de uma tragédia que continua a causar a morte de milhares de pessoas a cada dia. E há o complicado problema narrativo de como transformar aquilo que alguém definiu como "um apocalipse tedioso" —um período de pausa que, para os mais afortunados, vem sendo definido por ficar em casa e fazer coisa alguma— em uma história envolvente.

"O distúrbio pós-traumático que todos teremos não vai afetar só a maneira pela qual o assunto é tratado na escrita, mas também se alguém vai ou não querer ler a respeito", disse o escritor Tom Bissell, que aconselhou os romancistas a evitar o assunto, em um ensaio para o jornal The Los Angeles Times. "Quando temos uma horrível experiência mundial na qual milhões de pessoas morreram, o que existe nela a ser explorado artisticamente a não ser o fato de que foi horrível?"

Se levarmos em conta até que ponto o vírus vem dominando nossas vidas, talvez seja inevitável que nos vejamos inundados de trabalhos de ficção sobre a pandemia. E diversos autores disseram acreditar que isso seja necessário, apontando que, ao contrário da cobertura noticiosa constante e barulhenta sobre a Covid-19, que pode fazer com que os leitores se sintam dormentes e oprimidos, a ficção pode oferecer uma maneira de processar o tumulto emocional dos dois primeiros anos da pandemia.

"Eu não tinha qualquer ambição especial de escrever sobre a pandemia, mas foi como se um gigantesco tronco de árvore tivesse caído em meu caminho", disse Ian McEwan, que vai lançar um novo romance, "Lessons" —ou lições—, que acompanha a vida de um homem da década de 1940 até seus anos de velhice, em 2021, quando ele está morando sozinho em Londres durante o lockdown e contempla seu passado. "O assunto vai estar presente nos romances literários simplesmente porque não existe como contorná-lo, se você deseja escrever um romance socialmente realista".

"French Braid" —trança francesa, em inglês—, de Anne Tyler, que sai no mês que vem, acompanha uma família de Baltimore do final da década de 1950 até o tumulto de 2020, quando um casal aposentado descobre uma alegria inesperada por seu filho adulto e neto chegarem para se refugiar em companhia deles durante a pandemia.

Nell Freudenberger está escrevendo um romance, cujo título provisório é "The Limits" —ou os limites—, no qual explora os sentimentos de pavor e incerteza que o vírus desencadeou, e mostra uma adolescente que tenta encontrar o equilíbrio entre o estudo remoto e cuidar de seu filho, um biólogo enervado pela mudança do clima e um médico que se sente desamparado ao tratar de pacientes da Covid-19.

A escritora chilena Isabel Allende, autora do best-seller 'A Casa dos Espíritos' - Lori Barra/Divulgação

Em "Violeta", de Isabel Allende, a vida da narradora é delimitada por duas pandemias, a da gripe espanhola e a do coronavírus, uma "estranha simetria" sobre a qual ela reflete enquanto está morrendo, em isolamento. "A experiência de ver todo o planeta congelado por causa de um vírus é tão extraordinária que estou certa de que será usada extensamente na literatura", disse Allende via email. "É um desses acontecimentos que marcam uma era".

Não houve escassez de conteúdo relacionado à pandemia, de séries de TV a documentários e trabalhos longos de não ficção, passando por poesia e contos. Mas o período de gestação de um romance muitas vezes é maior, e a primeira onda de ficção literária influenciada pela pandemia está chegando em um momento nebuloso, no qual o vírus começa a parecer tanto corriqueiro quanto indestrutível, e não está claro quando a crise vai terminar, o que faz dela um assunto difícil de abordar para os escritores de ficção.

"Não seria possível ter o grande romance sobre o coronavírus, por enquanto, porque ainda não sabemos como a história vai acabar", disse o escritor e crítico Daniel Mendelsohn.

Quando os primeiros romances sobre a Covid-19 começaram a chegar ao mercado, no ano passado, alguns críticos questionaram se a pandemia estimularia a criação de literatura digna de atenção. "Tenho certo medo da onda de ficção relacionada à Covid-19 que chegara a nós nos próximos anos", escreveu o resenhista Sam Sacks no The Wall Street Journal.

Em novembro de 2021, quando a escritora inglesa Sarah Moss publicou o romance "The Fell", ou a queda, —sobre uma mulher que desafia uma ordem compulsória de quarentena depois de se ver exposta à Covid-19—, alguns críticos britânicos criticaram o livro por recriar as experiências dolorosas do lockdown.

"Houve muita reprovação, muita gente dizendo que era cedo demais", disse Moss. "Diversas das críticas afirmavam que ninguém ia querer ler um romance sobre a pandemia". No entanto, ela apontou, muitos leitores se identificaram com a claustrofobia e o tédio que os personagens de Moss têm de suportar em "The Fell", que sai em março nos Estados Unidos. "Algumas pessoas se sentem imensamente reconfortadas ao descobrir que é possível fazer arte de uma coisa como essa", ela disse.

Pragas vêm sendo um elemento de drama padrão ao longo da história da literatura, da "Ilíada" à Bíblia e clássicos como "Decameron", de Boccaccio, e "Diário do Ano da Praga", de Daniel Defoe. Mas pandemias do passado também serviram para demonstrar a dificuldade de extrair inspiração literária de um surto viral mortífero.

Pouca ficção digna de nota foi escrita em resposta à gripe espanhola de 1918, que matou entre 50 milhões e 100 milhões de pessoas mas mal deixou marca no registro literário. A maioria dos escritores daquele período evitou o tópico ou se referiu a ele apenas de forma oblíqua, em parte talvez por a pandemia ter surgido nos calcanhares da Primeira Guerra Mundial e também porque, ao contrário do que acontece em uma história de guerra envolvente, um vírus invisível, que ataca indiscriminadamente, não oferece escopo para uma narrativa dramática.

"A gripe espanhola desapareceu da memória cultural", disse Elizabeth Outka, autora de "Viral Modernism: The Influenza Pandemic and Interwar Literature" —ou modernismo viral: a pandemia de gripe e a literatura entre guerras.

É improvável que o mesmo aconteça com o coronavírus, que já resultou em um grupo pequeno mas crescente de obras de ficção literária, que inclui sátiras sociais como "Our Country Friends" —ou nossos amigos do interior—, de Gary Shteyngart, e a nova coleção de contos de Doyle, "Life Without Children" —vida sem crianças, em inglês—, que evoca a vida na Irlanda durante os severos lockdowns.

Em entrevista de sua casa em Dublin, o escritor disse que considera reconfortante "colocar a miséria dos dois últimos anos em uso de uma forma imaginativa", com histórias sobre pessoas comuns sobrevivendo ao que até recentemente parecia inimaginável.

"Eu preferiria não ter vivido essa história, ou não a estar vivendo, mas, já que aconteceu, vou usá-la", ele disse. "É o caso de contar uma história que não poderia ser contada em outras circunstâncias".

O ciclo de produção relativamente glacial da ficção também está criando obstáculos para escritores que, como os demais de nós, não conseguem prever que cara a vida terá nos próximos anos, e se preocupam com a possibilidade de que referências à pandemia façam com que seus romances pareçam datados.

Rebecca Makkai estava escrevendo um novo romance sobre um assassinato em um colégio interno em New Hampshire e ficou sem saber como lidar com a Covid-19. Ela decidiu contornar o problema fazendo com que a história aconteça em 2018, com uma segunda linha do tempo que leva o julgamento pelo homicídio a ocorrer no segundo trimestre de 2022, quando ela presumia que tudo já estaria de volta ao normal. E então 2022 chegou e o vírus continuou causando estrago.

"Eu revi o texto e, desanimadamente, fiz com que os personagens colocassem máscaras", ela disse. Mas embora estivesse acrescentando detalhes da era da pandemia, ela tentou manter o coronavírus apenas como um pano de fundo na trama do livro, que deve sair no ano que vem.

"Não quis fazer demais quanto a isso, porque o tema do livro não é esse", disse Makkai. "A história se passa agora, mas não é sobre a pandemia".

Weike Wang, que revisou um rascunho tardio de seu romance 'Joan Is Okay' para adicionar detalhes que refletem a pandemia - Frances F. Denny / The New York Times

Weike Wang tinha acabado de concluir um primeiro rascunho de seu novo romance, "Joan Is Okay" —ou Joan está bem—, que gira em torno de uma americana de origem asiática que trabalha como médica em um pronto-socorro de Nova York. Então surgiu a Covid-19. Ela decidiu revisar a história para refletir a maneira pela qual o vírus sobrecarregou os hospitais, mas se preocupava com a possibilidade de que esse lado da história parecesse desconexo quando tudo voltar ao normal.

"Eu ficava questionando o que estava fazendo, e pensando que, quando o livro saísse, talvez ninguém mais se lembrasse da pandemia", ela recordou.

Depois de uma dúzia de versões, ela descobriu uma maneira de tornar a pandemia parte da experiência de sua personagem como médica sem fazer disso uma parte central da narrativa.

Mas ainda assim Wang se preocupa com a possibilidade de que o problema permaneça, até que a pandemia acabe. Recentemente, ela vem escrevendo contos, e luta para decidir se seus personagens devem fazer coisas como ir a jantares, se encontrar com amigos para beber ou ir a uma sessão de terapia face a face.

"Eu amaria escrever um conto que não contenha a palavra pandemia", ela disse. "Mas até agora não consegui".

Tradução de Paulo Migliacci

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