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Descrição de chapéu LGBTQIA+

Quem é Jotta A, a cantora que fez sucesso no gospel antes de se descobrir trans

Artista alçada à fama por Raul Gil conta que viu pastores com amantes e que teve relação homossexual com colegas de fé

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São Paulo

Antes de chegar ao "Éden", Jotta A passou por um inferno particular. Hoje ela é a cantora e compositora que, com ajuda de Rafael Castilhol, produtor musical com Anitta e Ludmilla no portfólio, lança essa música com o nome do jardim em que Eva e Adão desobedeceram a Deus e saborearam o fruto proibido.

Jotta conhece bem o gosto da fama. Isso da época em que era um cantor e compositor que, com suporte da gravadora de Silas Malafaia, a Central Gospel Music, acumulou tanto reconhecimento que chegou a ser indicado ao Grammy Latino em 2014, na categoria música cristã em português.

Para os milhões de brasileiros ligados na indústria gospel nacional, ela era o menino franzino revelado pelo programa do apresentador Raul Gil, uma voz potente que emocionava fiéis com canções encharcadas de cristandade, na língua pátria e em espanhol.

Essa mesma audiência acompanhou, como quem come pipoca atenta a um reality show, notícias em portais evangélicos sobre aquela ovelha que ia se desgarrando do rebanho. Algumas das manchetes publicadas nos últimos anos pelo Fuxico Gospel –"Jotta A está pactuada com Lúcifer, diz satanista"; "Jotta A surge de vestido após longo período afastado da web"; "ex-cantor gospel volta a usar drogas".

Jotta demorou a entender que era uma mulher transgênero. Isso só aconteceu em 2020, durante a pandemia. Mas há anos ela sabe que aquele papo da "família tradicional brasileira", que parecia tão bonito na teoria pregada nos púlpitos, não era a prática vivenciada por muita gente graúda das igrejas. Por ela, inclusive.

Antes de continuar a contar sua história, a artista repousa na legging roxa as unhas postiças pontiagudas como garra de felino, pintadas de preto, rosa e estampa de onça. "Já cheguei a presenciar um líder religioso altamente reconhecido usando cocaína. Não cheguei a usar cocaína na adolescência, mas conhecia a maconha. Fumava naquela época e para mim era normal, porque via a galera da igreja fazendo."

A permissividade sexual, a mesma tão apedrejada nos cultos, também era rotina, segundo Jotta. "Vi muitos pastores terem amantes, e eu também fiz essas coisas. O lema era o seguinte –faça, mas faça meio escondido."

Nem tudo era algo consensual, entre adultos, diz. Ela conta que a irmã, também menor de idade, passou a fazer parte de suas viagens quando seu alcance na indústria gospel começou a encorpar. "Eu via vários pastores passando a mão na perna dela."

Jotta teve experiências homoafetivas com colegas de fé nos tempos em que ainda atendia pelo pronome masculino. Mas e a culpa? "Quando comecei a me descobrir sexualmente, fazia e me arrependia muito. Os caras eram da igreja."

Retrato de Jotta A, de 24 anos, estrela mirim do gospel que foi indicada para Grammy Latino - Eduardo Knapp/Folhapress

Jotta A, um nome artístico que brinca com as iniciais de seu nome de batismo, tinha 11 anos quando ganhou o concurso Jovem Talento Kids promovido por Raul Gil, com uma canção em que suplicava "usa-me, Senhor". Pouco depois, fechou um contrato com a gravadora de Malafaia e passou a viajar nas cruzadas evangélicas conduzidas pelo pastor Brasil afora.

Ali ela escutava muito "a questão da ideologia de gênero", lembra. "Eu pensava que poderia estar sendo influenciada por ela. Aquela coisa toda de kit gay, eu realmente ouvia muito quando era adolescente. Isso de certa forma dificultou me conhecer."

Na superfície, Jotta virou a pessoa que desprezaria a mulher que hoje ela se tornou. "Achava que essa autonegação me daria mais qualidade de vida." No dia a dia, pregava uma teologia na qual "você tem que abrir mão de si mesma para deixar Cristo comandar sua vida", afirma. "Na verdade eu estava vivendo uma mentira. Quando saía dos cultos, chegava em casa e chorava muito."

Nessa época, conta, teve um almoço de família com Malafaia, na casa da sogra do pastor, e conheceu Jair Bolsonaro, um deputado já com pretensões presidenciais, numa convenção da Assembleia de Deus Madureira, há cinco anos. "O pastor principal falou que precisava votar nele porque ele seria o líder que representaria a igreja."

Jotta não estava feliz, mas estava rica. "Depois do Raul Gil, eu realmente fui para o luxo. Comecei a ganhar muito dinheiro, uma média de quase R$ 200 mil por mês. Ostentei bastante, a gente tinha o carro do ano."

Com a adolescência, contudo, veio a rebeldia. Ela já não aceitava mais ser o "menino de ouro" do gospel. Aí Jotta foi lá e gravou "Vencedor", que diz "não quero, não quero mais brigar/ para alguém, alguém me aceitar/ do jeito que sou, do jeito que sou".

Ela conta ter ficado sabendo que Malafaia não gostou do que ouviu. "Já tinha essa polêmica que me rodeava, a de que eu poderia ser uma pessoa LGBT. Ele achou que eu estava fazendo apologia [da causa LGBTQIA+]."

E o que Jotta era, afinal? Nem ela própria sabia. Desde criança sentia um desconforto que não conseguia nomear. Acreditava muito em Deus e em Michael Jackson, que escutava escondida em LAN houses. "Me olhava no espelho e me sentia uma pessoa estranha. Quando me sentia bem, colocava um pano na cabeça. Era a única coisa que me fazia sentir mais viva."

Ela se refere às camisas que usava para simular penteados das mulheres da igreja evangélica que frequentava com os pais em Guajará-Mirim, em Rondônia, onde teimou em nascer depois de médicos avisarem a mãe, Édna, que o bebê em seu ventre tinha hidrocefalia e não resistiria.

Jotta estava bem. "Posso comprovar porque estou viva. Minha mãe acreditava muito num milagre", diz. Seu primeiro álbum, que gravou aos seis anos, remete à fé que Édna depositou em seu garotinho, como o via então. A obra se chama "Sou um Milagre".

A "visão pastoral muito sagrada" que tinha desde pequerrucha começou a rachar aos oito anos. Foi nessa idade que sofreu abuso sexual de um pastor que tinha a confiança da sua família, afirma. Não quer entrar em detalhes, mas diz que, no dia em questão, o líder religioso a levou para a casa dele. Os dois se trancaram num cômodo, a mulher dele no cômodo ao lado. De uma coisa Jotta se lembra –"ele tinha muitos vídeos no computador, algumas coisas eram infantis".

Os pais chegaram a denunciar o abusador, mas não gostavam de remexer muito o assunto. Preferiam "orar e entregar na mão de Deus", diz a filha. "Depois disso tudo, comecei a ver as coisas de maneira distorcida, parecia que eu estava só fingindo um personagem."

Precisou uma pandemia para acessar sentimentos represados por tantos anos —do mal que o abuso fez a ela à agrura de sufocar sua identidade feminina. Ela vivia na Colômbia, numa missão local, no início da crise da Covid-19. Sozinha lá, bateu a depressão. Pintou todas as paredes do apartamento de preto.

Mas depois veio a libertação. Jotta percebeu que, no isolamento social, podia vestir o que bem entendesse sem ninguém para a aborrecer. Tinha um vizinho drag queen que cedeu a ela uma saia jeans quase até o joelho. Foi a primeira peça feminina de muitas que se seguiram.

Ela voltou ao Rio de Janeiro no fim de 2020 e se revelou primeiro com a irmã. Os sobrinhos já a chamam de tia. Jotta nunca falou nada abertamente para a mãe, mas tem certeza que ela sabe e a respeita. "Ela acompanha tudo o que sai sobre mim."

A pauta no noticiário, agora, é a nova música de Jotta A. Em "Éden", ela canta versos como "viciado nessa raba/ tantos crimes cometi" e "fruto proibido/ me tirou do paraíso". Como Priscilla Alcantara, cantora que também se desvencilhou do rótulo gospel e no ano passado foi campeã da competição musical The Masked Singer Brasil, ela quer furar a bolha religiosa e ser uma popstar.

Está com 24 anos, tem "courage", ou coragem, em inglês, tatuada no pescoço e uma fé que não mais reprime a mulher que sempre foi. "Hoje não tenho um rótulo evangélico, cristão, mas tenho muito respeito por deixar que a crença me leve para aonde ela tem que me levar." O inferno não precisa ser os outros.

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