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Theo Dias

Democracia brasileira não morreu, mas foi atacada por Bolsonaro

Ex-presidente seguiu manual do autocrata contemporâneo e atuou metodicamente para criar crise institucional

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Theo Dias

Advogado criminal, é professor-fundador da FGV Direito SP

[RESUMO] Autor refuta opinião de não houve crise institucional no governo Bolsonaro e que seriam exagerados os alertas de ameaças à democracia. Para ele, Estado de Direito só resistiu porque algumas instituições não normalizaram posturas aberrantes do ex-presidente, mas, a longo prazo, seriam incapazes de impor limites a governos autoritários se não houver empenho de eleitores e aperfeiçoamento de medidas de proteção constitucional.

Legislativo forte, fragmentação partidária, federalismo e Judiciário independente explicam o fracasso das investidas autoritárias do governo Bolsonaro. Esta é a tese do livro "Por que a Democracia Brasileira Não Morreu?" (Companhia das Letras), de Marcus André Melo, colunista da Folha, e Carlos Pereira.

Os respeitados cientistas políticos avaliam que o multipartidarismo fragmentado funciona como "antígeno institucional endógeno contra iniciativas extremistas". Apesar de "retumbantes fracassos" no âmbito das políticas públicas, defendem os autores, não houve crise institucional, e os analistas "exageraram" as ameaças à democracia, que "careciam de credibilidade".

Eles afirmam que "Bolsonaro não possuía os meios institucionais nem obteve apoio político necessário para suportar os custos associados à implementação de retrocessos democráticos". O ex-presidente submeteu-se ao jogo político, sendo "domesticado" pelas instituições.

O ex-presidente Jair Bolsonaro participa do Dia do Soldado na Concha Acústica do Exército, em Brasília (DF), em 25 de agosto de 2022 - Folhapress

Em posfácio do livro, o professor Barry Ames crava com convicção: "os sonhos autoritários de Bolsonaro nunca tiveram a menor chance de se tornar realidade"; as instituições "sobreviveriam a um segundo mandato", que "teria sido ainda mais ineficaz do que o primeiro".

O livro faz instigante análise do funcionamento do sistema político diante das turbulências da Lava Jato, do impeachment de Dilma e de Lula 3, mas não é dada a devida dimensão ao estrago causado pela Presidência de Jair Bolsonaro, que não só constituiu um desgoverno do ponto de vista programático como impôs o mais rigoroso teste à arquitetura institucional da Constituição de 1988.

Em entrevista à Folha em 2021, o ministro Edson Fachin elencou sintomas de "corrupção da democracia", reveladores de um "processo desconstituinte" em curso no país: remilitarização do governo civil, intimidações dos Poderes, ataques ao processo eleitoral e à liberdade de expressão, incentivo às armas e à violência, naturalização da corrupção.

O ex-presidente seguiu à risca o manual autocrático contemporâneo. Apostou na ebulição permanente e na polarização para mobilizar apoio popular e testar os limites da democracia. Fustigou oponentes, incitou as Forças Armadas contra a mídia, o sistema eleitoral e o Judiciário, convertido em alvo principal por ser a instância que administra as eleições.

Não foram devaneios de um postulante a ditador. Havia método nas ameaças, que se tornaram concretas diante de vulnerabilidades demonstradas por certos atores. Instituições atuaram diante dos ataques autoritários, mas de forma assimétrica.

O Congresso cultivou relação parasitária com o governo. Manteve-o vivo, servindo de escudo contra impeachment, e abocanhou o Orçamento. A maioria dos parlamentares não endossou projetos da extrema direita ideológica, como a PEC do Voto Impresso, mas foi conivente com desmandos e desatinos na saúde, na educação, no meio ambiente, na política externa.

Bolsonaro não foi domesticado pelas instituições, mas normalizado. Ideias hostis a pilares liberais, vulgaridades, violações às regras de civilidade política são toleradas, ou até enaltecidas, por amplos segmentos da classe política e da sociedade. Também por aqui, as fronteiras entre centro, direita e extrema direita tornam-se porosas.

Sintoma mais revelador da dimensão institucional da crise foi a violação da função constitucional das Forças Armadas. O envolvimento dos militares na política crescia desde Dilma e Temer, com operações de Garantia da Lei e da Ordem (GLO) e intervenção federal no Rio de Janeiro (vale a leitura do livro "Dano Colateral", Natalia Viana).

A saída dos quartéis para a arena política se radicaliza com a instalação da Comissão Nacional da Verdade e a adesão de integrantes do alto escalão à campanha presidencial de Bolsonaro. Com sua vitória, a militarização da política chega ao ápice e passa a constituir problema institucional relevante, com aumento exponencial da presença de militares no governo.

Investigações demonstram articulação para um golpe de Estado, com ciência ou participação de integrantes da alta hierarquia militar. Enquanto os chefes militares dos EUA foram taxativos na afirmação do dever de obediência ao poder civil e à Constituição após a insurreição de 6 de janeiro de 2021, os militares brasileiros atuaram de forma errática antes, durante e após o 8 de janeiro de 2023.

E mais —houve apoio ou silêncio cúmplice da alta hierarquia diante de manifestações golpistas em frente a quartéis após as eleições de 2022.

O processo de corrosão institucional alastrou-se por todas as esferas. Investigações indicam ingerência em órgãos como Coaf (Conselho de Controle de Atividades Financeiras), Polícia Federal e Receita Federal, em benefício do presidente, seus familiares e aliados. Há contundentes indícios de espionagens ilegais realizadas pela Agência Brasileira de Inteligência ("Abin paralela"). A Polícia Rodoviária Federal atuou como milícia política no dia do segundo turno das eleições.

Outra anomalia institucional grave foi a subserviência do procurador-geral da República, Augusto Aras, ao presidente. Diante da blindagem oferecida pela PGR e pelo Congresso, recaiu ao STF e ao TSE a responsabilidade maior de defesa da democracia, especialmente na investigação criminal de atos antidemocráticos e de disseminação de informações falsas contra a integridade do sistema eleitoral.

Populistas autoritários, que ascendem ao poder pelo voto, fazem uso das instituições para moldá-las às suas ambições, corroendo a democracia por dentro. Quando detêm maioria parlamentar, alteram a Constituição, reformam leis de forma a neutralizar freios impostos pelo regime democrático e assegurar a permanência no poder.

No caso brasileiro, diante de entraves no Congresso, da resistência judicial, da vigilância da imprensa, o governo implementou um projeto de centralização de poder, valendo-se, com frequência, de decretos ou de atos administrativos para subverter leis ou desconstruir políticas públicas.

Em pesquisa pela FGV Direito SP, Oscar Vilhena Vieira, Rubens Glezer e Ana Laura Pereira Barbosa fizeram radiografia desse modus operandi, definido como "infralegalismo autoritário": desmantelamento de políticas (controle de armas); ingerência na autonomia de órgãos públicos (Ibama, ICMBio, Ipea); violação de regras de transparência de atos administrativos.

Não é possível afirmar que a reeleição levaria à morte da democracia, mas o abalo seria grande. É realista pensar em escalada autoritária no segundo mandato, com maior protagonismo militar, submissão crescente das instâncias de controle (PF, TCU, AGU, CGU), maior alinhamento do Congresso às pautas do bolsonarismo raiz, degradação de direitos de grupos vulneráveis e desmantelamento de políticas públicas de raiz constitucional.

No âmbito do Judiciário, haveria modificação em curto prazo na composição dos TRFs, STJ, TSE e STF, cujos integrantes dependem de nomeação presidencial. O clima anti-Supremo no Congresso estaria mais acirrado, sendo razoável pensar na hipótese de impeachment de ministros ou de emendas com aumento do número de vagas em tribunais superiores.

As instituições estariam sendo conduzidas por indivíduos que se mostraram desleais à democracia: Anderson Torres (ex-ministro da Justiça e Segurança Pública do Brasil), Augusto Aras, Silvinei Vasques (ex-diretor-geral da Polícia Rodoviária Federal), o tenente-coronel Mauro Cid (ex-ajudante de ordens de Jair Bolsonaro), Alexandre Ramagem (ex-diretor-geral da Abin), o general Augusto Heleno (ex-chefe do GSI, o Gabinete de Segurança Institucional da Presidência), o general Braga Netto (ex-ministro da Casa Civil e da Defesa).

E viriam novos oportunistas, que sucumbiriam às benesses do poder. O equilíbrio do federalismo estaria fragilizado por governadores aliados em Minas Gerais, no Rio de Janeiro e em São Paulo, desatados do paradoxo de "bolsonaristas moderados".

A constatação de vulnerabilidade da democracia é importante para que possam ser projetados aperfeiçoamentos institucionais voltados à proteção contra usurpações vindas do Estado e da sociedade.

Algumas propostas relevantes: reestruturação e desmilitarização dos serviços de inteligência; imposição de limites à interferência militar na política, como restrição de exercício de cargo governamental e de candidatura por militar da ativa; regulamentação das redes sociais contra desinformação, discurso de ódio e antidemocrático; persecução de crimes contra a democracia; revisão pelo conselho nacional do MPF de pedido de arquivamento de inquérito pelo PGR; mecanismo de controle do poder do presidente da Câmara no processamento de pedido de impeachment.

O paradigma constitucional alemão da "democracia defensiva" ("wehrhafte Demokratie") é uma referência para esse debate. Assegurar a proteção do Estado de Direito dentro das regras do Estado de Direito é o difícil equilíbrio que se impõe.

A democracia brasileira não sucumbiu porque algumas instituições, com respaldo e sob pressão de parte da sociedade, não normalizaram o que foi aberrante, compreenderam a gravidade das ameaças e adotaram postura defensiva em momentos chave.

A longo prazo, contudo, as instituições serão incapazes de impor limites contra governantes autoritários se não houver empenho de eleitores em mantê-los distantes do poder pelo voto.

O aprendizado deve servir de alerta para a necessidade de convergências políticas, não somente em momentos eleitorais, entre lideranças de centro, de direita e de esquerda que sejam leais às regras do jogo democrático. Uma manifestação de apoio à democracia na Venezuela pelo governo brasileiro seria um passo em tal sentido.

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