Por que Alemanha criou um cargo no governo de 'defensor da democracia'

Agência monitora indivíduos e organizações antidemocráticos, como os que maquinaram conspiração desbaratada recentemente

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Katrin Bennhold
Neustadt (Alemanha) | The New York Times

Thomas Haldenwang, diretor da agência nacional de inteligência alemã, franze o cenho ao constatar as cores desbotadas da bandeira do castelo Hambach, hasteada ali durante uma marcha pró-democracia em 1832. Quase 200 anos depois, milhares de cidadãos revoltados voltaram às ruas com as cores nacionais, desta vez para protestar contra os valores democráticos defendidos por seus ancestrais.

A ironia não passa despercebida para Haldenwang, principalmente porque sua função é proteger esses princípios e o estatuto de que fazem parte —literalmente: ele é responsável pela Agência de Proteção à Constituição, como seu departamento é conhecido na Alemanha. Sua missão é identificar indivíduos e organizações antidemocráticos e mantê-los sob vigilância.

"Nossos símbolos nacionais foram sequestrados pelos inimigos da democracia liberal, e isso me preocupa. Precisamos recuperá-los", diz no castelo, em uma rara aparição pública para discutir ameaças à democracia em um auditório lotado de alunos do ensino médio.

Thomas Haldenwang, chefe do departamento de inteligência doméstica da Alemanha, no castelo Hambach, em Neustadt - Igmar Nolting - 16.nov.22/The New York Times

Num momento em que a Guerra da Ucrânia, a recessão e a alta nos preços da energia conspiram para a ascensão da direita, Haldenwang leva seu cargo muito a sério. Em dezembro, seu departamento ajudou a desbaratar um plano para derrubar o governo, em uma das maiores operações de contraterrorismo da Alemanha pós-guerra, a segunda de 2022. "Realmente me vejo como defensor da democracia no país. É minha missão constitucional, sim, mas pessoal também."

Nascido em 1960, Haldenwang cresceu em Wuppertal, na porção ocidental, num período em que os alemães estavam só começando a digerir o passado nazista. Aos 16 anos, uma jovem professora de história levou sua classe para conhecer o memorial do campo de concentração de Dachau. As imagens dos cadáveres macérrimos ficaram marcadas no rapaz, que se apresentou como voluntário para trabalhar no kibutz israelense administrado pelos sobreviventes do levante de 1943 no Gueto de Varsóvia.

Muitos destes se recusavam a conversar com os jovens alemães, e os que o faziam insistiam em falar inglês. Para Haldenwang, a questão era pessoal, já que o próprio avô lutara e morrera pelo Exército de Hitler perto de Varsóvia. "Tinha plena consciência da culpa da Alemanha nazista, do remorso que os alemães sentiam. Como descendentes, tínhamos uma responsabilidade especial de não permitir que aquilo voltasse a ser cometido." De fato, o "nunca mais" se tornou parte integral da identidade alemã do pós-guerra, o único caminho a seguir para um país que queria se redimir do regime de terror assassino perante todos os aliados valorosos de um Ocidente democrático.

Para Haldenwang, o mantra se tornou motivação; filho de um executivo da indústria têxtil e uma dona de casa, fez direito e comprou a primeira cópia da Constituição (de 1949) com 20 e poucos anos, prometendo dedicar a vida a servir à democracia alemã do pós-guerra. Ao contrário de boa parte de sua geração, que preferiu evitar o serviço militar, alistou-se na Marinha antes de se tornar servidor. Depois da queda do Muro de Berlim, foi enviado para a antiga porção oriental, comunista, para ajudar a construir instituições democráticas antes de se tornar ministro do Interior e diretor do serviço de inteligência.

O órgão que ele administra desde 2018 é a base do que os alemães chamam de "democracia defensiva" —equipada para a proteção contra ameaças internas. A Alemanha conhece melhor essas intimidações do que qualquer democracia ocidental. Afinal, o Partido Nazista de Hitler subiu ao poder depois de um pleito democrático e o usou para abolir o sistema de governo que o elegeu.

Os autores da Constituição deram à instituição incipiente instrumentos robustos para fazê-la durar: um artigo permite à Justiça proibir a existência de partidos que se digam inimigos do instrumento; outro estipula que um indivíduo pode perder direitos constitucionais se usá-los para fragilizar a Carta; um ainda autoriza a resistência armada contra um projeto de ditador caso fracassem todas as outras opções.

Haldenwang, que hoje conta com dez edições da Constituição na estante, gosta de recitar o artigo 1º: "A dignidade do ser humano é incontestável". Diz ele: "Esse preceito resume a missão da minha agência. Somos o mecanismo de alerta precoce da democracia". Contudo, segundo os críticos, quando se trata de identificar o radicalismo de ultradireita, o órgão é lento. Na verdade, antes que Haldenwang assumisse o controle, a política alemã parecia fazer vista grossa para a facção; desde a queda do comunismo, mais de 260 assassinatos cometidos por seus seguidores foram considerados "casos isolados".

A lambança mais explícita se deu quando um grupo terrorista neonazista matou nove imigrantes entre 2000 e 2006 e passou despercebido até 2011, quando assumiu a responsabilidade pelos crimes. Pior, informantes pagos da agência foram acusados de ajudá-lo; um dia depois da identificação, funcionários destruíram documentos, numa ação que parecia uma iniciativa deliberada de encobrir seu envolvimento.

Haldenwang conta que começou a perceber a gravidade do problema na crise dos refugiados de 2015-16, quando era vice da entidade que hoje dirige. Cristão praticante, apoiou a decisão de Angela Merkel de receber mais de 1 milhão de estrangeiros, defendendo-a quando até os chefes da polícia federal, da inteligência externa e do Ministério do Interior disseram que a posição ameaçava a segurança nacional.

Um movimento anti-imigração perverso ganhou força, acabando por levar o partido de ultradireita Alternativa para a Alemanha, ou AfD, ao Parlamento pela primeira vez desde o nazismo; Haldenwang ficou apavorado. "Foi um divisor de águas. A partir dali, ficou bem claro que tínhamos de agir."

Empossado, não perdeu tempo. Dezenas de integrantes do ecossistema radical de direita em expansão —parte de um think tank, uma revista, uma startup— foram classificadas de extremistas e mantidos sob vigilância. Depois de três ataques terroristas letais perpetrados pela facção, incluindo o primeiro assassinato de um político desde a instituição do nazismo, o monitoramento foi reforçado.

A bandeira original alemã, exposta no castelo Hambach - Ingmar Nolting - 16.nov.22/The New York Times

Mais surpreendente ainda foi Haldenwang ter colocado o próprio AfD sob vigília, naquela que foi considerada uma das ações mais drásticas tomadas por uma democracia ocidental para se proteger da extrema direita. O partido apelou, mas perdeu, e, em março passado, um tribunal administrativo de Colônia confirmou a avaliação da agência de "atividades anticonstitucionais dentro do AfD".

Apesar disso, e mesmo que sua agência continue em alerta máximo, após as ações de dezembro contra o grupo acusado de querer derrubar o governo, ele mantém confiança inabalável na democracia defensiva alemã. "Há duas formas de encarar essa operação: uma focando as sérias ameaças à democracia; outra exaltando nossas instituições e serviços de segurança, que derrubaram essas ameaças de forma eficaz."

Policiais detém o "príncipe" Heinrich 13º de Reuss em sua casa, em Frankfurt - Boris Roessler - 7.dez.22/DPA/AFP
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