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Descrição de chapéu Guerra na Ucrânia Rússia

Banir mídia russa e Trump das redes sociais não resolve desinformação, diz especialista

Para Giuliano Da Empoli, censura só alimenta propaganda de populistas que se vendem como defensores da liberdade

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Nova York

Expulsar as mídias estatais russas RT e Sputnik das redes sociais ou banir Donald Trump do Twitter e do Facebook não é a solução para a desinformação. Tentar silenciar os grandes disseminadores de informações falsas só dá mais munição para políticos autocráticos, acredita o cientista político Giuliano Da Empoli, autor do best-seller "Os Engenheiros do Caos".

"Os movimentos [tecnopopulistas] mudaram sua identidade e agora se vendem como defensores da liberdade", diz à Folha. "Na propaganda deles, os progressistas estão tirando das pessoas a liberdade; se cairmos nessa armadilha, só vamos fortalecer o argumento dos populistas."

Segundo o franco-italiano, a maneira mais eficiente de combater a manipulação do debate público é ter uma mídia que confronte e desminta rapidamente políticos que disseminarem mentiras, sem cair nas armadilhas dos populistas digitais —que usam a imprensa para amplificar seu discurso.

O presidente dos EUA, Donald Trump, e o presidente da Rússia, Vladimir Putin, participam de reunião bilateral na cúpula de líderes do G20 em Osaka, no Japão - Kevin Lamarque - 28.jun.19 / Reuters

Empoli faria uma palestra no Sesc em São Paulo nesta semana e tinha encontros com parlamentares, mas não pôde embarcar porque recebeu diagnóstico de Covid. Em abril, ele publica na França "O Mago do Kremlin: os Homens de Putin", ficção baseada em Vladislav Surkov, um dos mais influentes conselheiros do presidente russo.

Jair Bolsonaro (PL), o ex-presidente americano Donald Trump e outros populistas abraçaram a defesa da liberdade de expressão como bandeira e se retratam como vítimas de censura. Como é possível respeitar a liberdade de expressão ao mesmo tempo que se combate a desinformação? Primeiro, precisamos não cair na armadilha mental de definir como propaganda ou desinformação toda opinião com a qual não concordamos —algo que tendemos a fazer de vez em quando. E é também bom ter em mente que a polícia da verdade só existiu em regimes totalitários.

Dito isso, não acho que calar essas pessoas seja a solução. Claro, pode-se expulsar Trump do Twitter, mas essa ação, além de problemática, não vai conseguir silenciá-lo. Há grande responsabilidade da mídia em relação a esses movimentos populistas, que tiram proveito até de certas obrigações jornalísticas para prosperar e disseminar sua mensagem.

Já vimos que checagem de fatos não funciona quando é feita meia hora depois ou no dia seguinte. Ninguém presta atenção. O que é eficiente é ter jornalistas bem informados que contestam informações falsas imediatamente, que tenham preparo e coragem para fazer isso. Assim participamos do debate.

É tentador achar que vamos silenciar algumas vozes, mas isso não funciona. Os movimentos [tecnopopulistas] mudaram sua identidade e agora se vendem como defensores da liberdade, dizem estar lutando contra a censura. Na propaganda deles, progressistas estão tirando das pessoas a liberdade para comer o que quiserem, para expressar suas opiniões, estão roubando até o Natal; se cairmos nessa armadilha, só vamos fortalecer o argumento dos populistas. Essa "luta pela liberdade" agora se refere às vacinas e às restrições para conter a Covid, mas em pouco tempo será sobre o ambiente.

E é difícil argumentar contra luta pela liberdade, certo? Exato [risos].

O sr. publicou "Engenheiros do Caos" em 2019. De lá para cá, Trump perdeu a eleição, mas o trumpismo continua vivo. Bolsonaro caiu nas pesquisas, mas ainda é competitivo. O que mudou? Nos últimos dois anos, a Covid levou a uma crise existencial, e as pessoas voltaram a focar suas vidas e a apostar em políticos mais experientes. Claro, ainda existem minorias exaltadas, mas, na maioria, as pessoas viveram uma espécie de volta à realidade.

Esses movimentos populistas, para prosperar, precisam hackear a agenda pública e se manter no centro de tudo o tempo todo. Quando há uma crise como a pandemia, é mais difícil. Eles tentaram, mobilizaram uma minoria com teorias da conspiração, mas no geral fracassaram. Foram seduzidos por seus instintos antiestablishment, de serem contra a ciência, contra a mídia. Tornaram-se antissaúde pública, e isso os deixou muito à margem.

Esses líderes foram alçados ao poder com campanhas com eco no mainstream —nacionalismo, contra a corrupção e a imigração. Mas com o coronavírus e as vacinas, se distanciaram muito do mainstream. Quando não houver mais a Covid como clivagem e o debate normal voltar, ninguém sabe o que vai acontecer com esses movimentos. Ninguém achou um antídoto.

Giuliano Da Empoli , autor de "Engenheiros do Caos", livro sobre fake news e manipulação eleitoral, posa para foto de divulgação. - Brigitte Baudesson

Em que sentido? A crise da Covid baixou a temperatura. Estou convencido de que Trump teria vencido as eleições se não fosse pela pandemia. Em vários lugares temos esses políticos tranquilizadores voltando: Joe Biden nos EUA; na Alemanha, Olaf Scholz é um social-democrata velha guarda, ainda que um pouco mais jovem; o velho banqueiro Mario Draghi na Itália; Lula pode voltar ao poder no Brasil.

Mas esses não são antídotos. A febre está baixando por alguns motivos, mas essas figuras mais calmas não são o antídoto para o que vivemos nos últimos anos. Não vejo novos líderes ou novas ideias. E mesmo na dimensão digital, tampouco descobrimos como curar o que vivemos.

Tem havido pressão sobre as plataformas de internet e elas vêm fazendo mudanças. Mas e se isso não for suficiente —se o maior problema não forem as plataformas, mas sim pessoas e líderes se mobilizando sem bots ou trolls contra a democracia? Regulação já é muito difícil, e estamos longe de ter regulação eficiente. Na Europa, o debate caminha para o lugar certo e há medidas significativas, mas estamos no começo. E o problema vai além disso, está ligado à ideia de realidade compartilhada.

Quando as pessoas focam as fake news, mostram que não entenderam o problema. Claro que existem fake news e elas são um problema, mas você consegue construir e viver uma realidade paralela sem fake news, só selecionando as notícias e informações que vai consumir. Nunca mais vamos voltar para aquela época em que a mídia de massas, os jornais e a TV determinavam o que era a realidade para a maior parte das pessoas, o que era digno de ser noticiado.

Então, como ter um debate público democrático em um contexto de realidade fragmentada? É por isso que digo que ainda não descobrimos o antídoto. Apesar disso, não estou tão pessimista, porque as pessoas estão conseguindo enxergar as consequências desse tipo de propaganda desinformativa. Por exemplo, o que está ocorrendo na Ucrânia mostra que essa abordagem não se resume a palavras e memes —ela leva, em última instância, à violência.

Como o senhor avalia as operações de influência da Rússia durante a invasão da Ucrânia? Obviamente não estão indo bem. As pessoas por trás das campanhas relativamente sutis e sofisticadas da Rússia, como as usadas na anexação da Crimeia [2014], estão em baixa. É em uma dessas pessoas que se baseia meu novo livro, Vladislav Surkov.

Hoje, temos uma abordagem sem nenhuma sutileza. Não há mais tentativas de manipular a comunicação para o Ocidente. Putin não está nem aí, não está fazendo ofensiva de relações públicas para o público ocidental. Ele já perdeu essa guerra de informação.

Não tem como manipular a realidade para um Ocidente que está vendo a Rússia destruir cidades e matar civis. Mas o governo russo precisa fazer a campanha de influência interna, que está seguindo uma linha muito mais agressiva, fechando veículos de mídia, censurando vozes dissonantes, prendendo pessoas e barrando plataformas de internet. Infelizmente, não temos como avaliar se isso está sendo bem-sucedido, porque não sabemos como isso é recebido dentro da Rússia.

Interessante o sr. dizer que Putin já perdeu a guerra da informação no Ocidente. No Brasil, há uma parcela de pessoas de esquerda defendendo as ações russas e outra parcela da ultradireita que apoia a abordagem "homem forte" de Putin. Como vê isso? As redes de apoio a Putin no Ocidente são fragmentadas. Claro que, nos tempos de Guerra Fria, os partidos comunistas no Ocidente eram pró-União Soviética e depois continuaram pró-Rússia. Mas essa rede de apoio se diversificou nos últimos anos.

Aqui na França, Putin tem apoio da extrema direita por causa dos valores tradicionais, autoritários, e da extrema esquerda, pelo antiamericanismo. E conquistou influência com dinheiro, acordos comerciais, assentos em conselhos.

A RT desenvolveu uma imagem de anticonformista, de voz independente, que diz as verdades que o establishment esconde. Na França e na Itália, e também em Alemanha e Reino Unido, é impressionante o apoio que Putin teve nos últimos anos. Ele agora está encolhendo, claro, porque ficou mais difícil justificá-lo. Mas os motivos continuam presentes.

Em termos de regulação das plataformas, o que considera mais urgente? A prioridade é a transparência. Antes de podermos desenhar regulação, precisamos entender como as plataformas funcionam, é uma precondição. E não podemos esperar que elas se autorregulem —precisa vir do poder político.

A experiência da guerra na Ucrânia mostra os limites de campanhas de desinformação orquestradas por líderes autoritários? É cedo para tirar conclusões, mas a guerra nos mostrou que ainda existe esse lado bom das redes sociais. É um pêndulo. Começamos com completo entusiasmo (lembre-se do Twitter na Primavera Árabe), aí foi para o outro lado, e as plataformas se tornaram os maiores inimigos da democracia —ainda acho que seja o caso. Mas, na Ucrânia, vimos como elas podem ser usadas de forma positiva para mobilização democrática, para denunciar violações de direitos e violência.


Raio-x | Giuliano Da Empoli, 49

Nascido em Paris em 1973, formou-se cientista político e dirige o think tank Volta, com sede em Milão. Estudou na Sciences Po de Paris, foi secretário de Cultura de Florença e conselheiro político do ex-premiê da Itália Matteo Renzi (2014 - 2016). É autor, entre outros, do best-seller "Os Engenheiros do Caos" (ed. Vestígio, 2019), que vendeu mais de 32 mil exemplares no Brasil.

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