Siga a folha

Descrição de chapéu
Gabriela Arantes Wagner

Carta aberta de uma cientista às mães de filhos com deficiência

Decreto que possibilita separar crianças especiais vai na contramão da ciência

Continue lendo com acesso ilimitado.
Aproveite esta oferta especial:

Oferta Exclusiva

6 meses por R$ 1,90/mês

SOMENTE ESSA SEMANA

ASSINE A FOLHA

Cancele quando quiser

Notícias no momento em que acontecem, newsletters exclusivas e mais de 200 colunas e blogs.
Apoie o jornalismo profissional.

Gabriela Arantes Wagner

Professora-adjunta do Departamento de Medicina Preventiva da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp)

Sou cientista. Utilizo um conjunto de procedimentos pelos quais me proponho responder a problemas científicos e testar hipóteses científicas. A ciência por si só é real, contingente, verificável, sistemática e aproximadamente exata. Cabe a ela a refutar as hipóteses a partir de novos achados. Para Maria Cecília de Souza Minayo (2001), a pesquisa alimenta o ensino, atualiza-se ante a realidade do mundo e vincula o pensamento à ação. Portanto, formulo perguntas, não me apoio em doutrinas sobrenaturais irrefutáveis ou em pontos de vista superficiais, subjetivos, sensitivos e assistemáticos.

Sou mãe de uma criança que se enquadra como pessoa com deficiência (PcD), conforme a Lei Brasileira de Inclusão (LBI), de 2015. Minha filha tem impedimento de longo prazo de natureza mental e intelectual que obstrui sua participação plena e efetiva na sociedade em igualdade de condições com as demais pessoas. Ela tem síndrome de Down e faz parte do 0,5% de PcD que possui alguma deficiência intelectual desde o nascimento, conforme a Pesquisa Nacional de Saúde de 2013.

A professora Gabriela Arantes Wagner, do Departamento de Medicina Preventiva da Unifesp - Divulgação

A LBI, em seu artigo 4º, cita que toda PcD tem direito à igualdade de oportunidades com as demais pessoas e não sofrerá nenhuma espécie de discriminação. A referida lei considera como discriminação toda forma de distinção, restrição ou exclusão. A inclusão social é tão fundamental que se constitui no 10º dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Organização das Nações Unidas. O Brasil, como um signatário da agenda de 2030, deverá empoderar e promover a inclusão social, econômica e política de todos, independentemente de idade, gênero, deficiência, raça, etnia, origem, religião ou condição econômica.

Em 30 de setembro de 2020 foi publicado o decreto nº 10.502, que institui a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida. Nele, eu me deparei com o “atendimento educacional especializado” como diretriz constitucional, para além da institucionalização de tempos e espaços reservados para atividade complementar ou suplementar.

Imediatamente lembrei-me de uma entrevista que li na Folha, em 26 de setembro último, sobre a primeira mulher brasileira a obter uma cátedra na faculdade de Saúde Pública da Universidade Harvard. Na entrevista, Marcia Castro conta que a melhor universidade do mundo está mapeando a diversidade entre funcionários, estudantes e professores para combater desigualdades estruturais. Inclusão social na melhor universidade do mundo? Sem exclusão, restrição ou institucionalização.

A mesma cientista considera que nós, da academia, temos a obrigação de preencher o espaço, infelizmente deixado vazio, de campanhas públicas, e nos posicionarmos quando discordarmos. Então, eu me posicionarei. A ciência me fornece evidências para advogar a favor da minha filha. Segundo um estudo, pais de crianças com síndrome de Down frequentemente defendem seus filhos em diferentes situações, ações, atitudes, motivações e resultados, sendo a educação e a saúde os contextos mais importantes para a garantia da inclusão, igualdade e aceitação.

Em 2019, um tipo de estudo científico que responde ao que há de melhor nas relações de causa e efeito, chamado de revisão sistemática, extraiu evidências de 45 pesquisas para o avanço da compreensão sobre as experiências de inclusão social de crianças com e sem deficiência em diferentes ambientes comunitários.

Os resultados encontrados apontaram que, apesar da implementação de práticas inclusivas em ambientes educacionais, crianças com deficiência continuam a se sentir solitárias e excluídas, tendo contato limitado socialmente fora de casa e encontrando barreiras sistêmicas como bullying e discriminação. Para os autores, crianças com e sem deficiência precisam ser integradas em atividades e programas voltados para a promoção da inclusão social, a partir do ensino de estratégias de inclusão social, visando ajudá-las a lidar com barreiras.

O decreto nº 10.502 não considera as evidências científicas quando pressupõe a existência de atendimento educacional especializado, para além da institucionalização. Ele desconsidera que, apesar de práticas inclusivas, as crianças com deficiências continuam a se sentir solitárias, excluídas e enfrentam barreiras sistêmicas. Ao segregarem nossos filhos em instituições de longa permanência para suposto desenvolvimento de autonomia, retrocederemos anos, caminhando na contramão do mundo.

​Continuarei utilizando a ciência para promover e advogar pela inclusão social de minha filha. Está mais do que na hora de ouvirem a ciência neste país. Notadamente, a ciência de mães cientistas (#escolaespecialnaoeinclusiva).

TENDÊNCIAS / DEBATES
Os artigos publicados com assinatura não traduzem a opinião do jornal. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos problemas brasileiros e mundiais e de refletir as diversas tendências do pensamento contemporâneo.

Receba notícias da Folha

Cadastre-se e escolha quais newsletters gostaria de receber

Ativar newsletters

Relacionadas