É Logo Ali

Para quem gosta de caminhar, trilhar, escalaminhar e bater perna por aí

É Logo Ali - Luiza Pastor
Luiza Pastor
Descrição de chapéu
Todas escalada

Caminhar, como coçar, é só começar

O Brasil ainda não aproveita seu enorme potencial de ecoturismo na plenitude, mas sempre é hora de dar o primeiro passo

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Quase todos os entrevistados por este blog garantem que é cada vez maior o número de pessoas que busca algum tipo de atividade esportiva na natureza, e que já estão disponíveis grupos que organizam trilhas de níveis de dificuldades variadas para todo perfil de interessados (e de bolso). Mas a verdade é que estamos ainda muito longe de ser um país que desfruta rotineiramente de sua exuberante beleza natural.

Em maio passado, o Ministério do Turismo apontava que viagens para a natureza ou ecoturismo foram a preferência de 25,6% das viagens domésticas a lazer contabilizadas em 2019, e de 18,6% dos turistas internacionais. Esses percentuais eram comemorados pela pasta como o "maior índice dos últimos cinco anos", segundo contou ao blog Fabiana Oliveira, coordenadora-geral de Produtos e Experiências Turísticas do ministério em maio passado. Mas a avaliação da Abeta (Associação Brasileira das Agências de Ecoturismo e Turismo de Aventura) é de que esses números podem não ser tão precisos assim, considerando que se estima em torno dos 70% a informalidade dos operadores desses segmentos e as definições do que é viagem de natureza são um tanto vagas e podem incluir um fim de semana num hotel na praia.

Dia desses, conversando com uma amiga, ela me contava surpresa que, percorrendo a TMB (Tour du Mont Blanc, a trilha que dá a volta à montanha mais alta dos Alpes, com 180 quilômetros, e que percorre França, Itália e Suíça), encontrava famílias pelo caminho cujas crianças "imagine, com 5, 6 aninhos", não queriam ir para a casa, preferiam continuar nas quebradas da montanha, com todas as suas pirambeiras, a voltarem ao conforto conectado de suas casas.

Vista do Mont Blanc, montanha de 4.805 metros que oferece em sua base a trilha Tour du Mont Blanc, que passa por França, Itália e Suíça - Olivier Chassignole - 30.jan.23/AFP

Vá lá que viver perto dos Alpes, dos Pirineus ou dos Andes, para não ir tão longe, já é meio caminho andado para sentir, no mínimo, a curiosidade de ver e viver o que tem lá em cima, ir cada dia um pouco mais alto. Mas por que isso não valeria também para quem tem à mão massas de florestas, serras e matas dessa imensa biodiversidade que ocupa as fatias dos 8,5 milhões de quilômetros quadrados que sobreviveram ao desmatamento neste nosso país?

Muitos daqueles com que tenho conversado desde que iniciamos esta janela de letrinhas me dizem que até gostariam de fazer uma trilha mas...

...o trabalho, a família, os estudos não deixam tempo livre suficiente;
...não estão em forma física o bastante para encarar caminhos mais rústicos que as alamedas refrigeradas dos shopping centers;
...não sabem nem por onde começar, quais equipamentos ou roupas comprar, como evitar entrar em frias.

Pois então.

A fila de montanhistas que buscam alcançar o cume do Everest e esperam sua vez na Hillary Step aumenta a cada ano - @nimsday Project Possible/AFP

Vamos combinar: ninguém precisa pegar a fila da Hillary Step do Everest, aquele corredor absurdo que todo ano fica coalhado de montanhistas coloridos à espera de uma selfie no topo do mundo, para desfrutar do melhor que o planeta tem para oferecer. Não carece sofrer risco de queimaduras pelo frio extremo, fingir que está achando ótimas a falta de ar na zona da morte (ou seja, qualquer lugar acima dos 8 mil metros de altitude), as bolhas nos pés, a dor nas costas provocada pelo peso de uma mochila impossível, mesmo que levando apenas o "indispensável" —água, barrinha de cereais, máquina fotográfica e/ou o celular, aquelas pequenas miudezas que, acredite, parecem coisas à toa até que se instalam sobre seus ombros.

O fato óbvio que poucos consideram é que toda grande aventura começa no primeiro passo para fora da zona de conforto. A essa mesma amiga daí de cima, por exemplo, confessei que em uma manhã de domingo em algum momento da pré-história anterior ao advento do telefone celular, consegui perder-me dentro do minúsculo parque Alfredo Volpi, no bairro do Morumbi, zona sul de São Paulo, a poucos metros de onde havia deixado o carro estacionado. Tudo porque quis dar uma volta fora das trilhas demarcadas e acabei me embrenhando pelo mato sem qualquer precaução de sinalizar o caminho. Claro que foi só pegar uma reta, pois sabia que em algum momento esbarraria com a grade que me levaria até a saída, e ninguém precisaria ficar sabendo, certo?

Parque Alfredo Volpi, no bairro do Morumbi, em São Paulo - Maria do Carmo - 26.ago.10/Folhapress

Errado. Qual é a graça de viver uma aventura sem contá-la às gargalhadas aos amigos? Mico a gente paga em boa companhia.

Esta sem-noção que se perdeu num pequeno cercado de matinhos é a mesma que fez a Trilha Inca, de Cusco a Machu Pichu, que percorreu metade do Caminho de Santiago, que subiu ao monte Roraima, e que é, acima de tudo, apaixonada pela floresta amazônica. Floresta, aliás, que recomenda e volta a recomendar como a melhor opção de turismo a todo amigo estrangeiro que pergunta o que não deixar de fazer quando visitando o Brasil (para os nativos, eu até recomendo também, mas convenhamos que as tarifas aéreas não ajudam). Quem nunca dormiu (ou tentou dormir) numa rede sob uma lona presa nas árvores, enquanto os bugios berram ensandecidos e incomodados com sua presença e todos os mosquitos do planeta vêm conferir que gosto tem o sangue daquela carne fresca embrulhada precariamente num mosquiteiro, não sabe o que é ser parte da natureza. E ter histórias para contar.

Lona cobre a área que abrigará as redes para pernoite na mata
Lona cobre a área que abrigará as redes para pernoite na floresta amazônica - Luiza Pastor/Arquivo pessoal

O que é importante entender é que o esporte de aventuras pode ser para todos desde que se dê uma oportunidade àquele tênis confortável guardado no fundo do armário. Que as aventuras não precisam ser extremas, podem começar no bosquezinho mais próximo, naquele parque aonde você não vai há anos, embora fique a poucos quarteirões de sua casa. E, aos que deram esse monte de desculpas aí acima, o que sempre respondo é: guarde um tempo para você em meio à loucura do dia a dia, mesmo que alguns pratos se amontoem na pia e a vassoura grite sua indignação ao ser deixada de lado. Diga à família que foi ali e já volta, eles vão sobreviver a sua ausência. Faça de conta que está estudando botânica respirando em meio ao verde de sua pequena aventura. E vá aos poucos vendo como o fôlego aumenta, como suas pernas pedem para ir mais longe, como é bom respirar um pouco de ar puro e como é bom, tão bom, sonhar com o próximo objetivo, seja ele o Everest ou o pico do Jaraguá. Vai por mim, como já avisava o poeta Fernando Pessoa, "tudo vale a pena quando a alma não é pequena". E é na alma que vão se depositar suas mais divertidas conquistas e seus piores perrengues. Bora lá?

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