Era Outra Vez

Literatura infantojuvenil e outras histórias

Era Outra Vez - Bruno Molinero
Bruno Molinero
Descrição de chapéu Livros

Amazônia vira labirinto cor de sangue em novo livro de Roger Mello

'Espinho de Arraia' levou dez anos para ser feito pelo ilustrador, vencedor do prêmio Hans Christian Andersen

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Roger Mello não seria Roger Mello se não fossem os últimos dez anos. A frase parece óbvia, já que uma década é tempo suficiente para ser determinante no trabalho e na história de qualquer pessoa. Mas, no caso específico do ilustrador, esse período foi transformador.

De lá para cá, Roger venceu o prêmio Hans Christian Andersen, considerado o Nobel da literatura infantojuvenil, e empilhou troféus atrás de troféus, incluindo o americano Youth Media Award deste ano, da American Library Association, e a indicação ao Alma, o Astrid Lindgren Memorial Award. Além disso, viu sua obra ser traduzida da China à Colômbia e imprimiu definitivamente seu nome entre os principais autores de livros ilustrados do mundo.

Roger Mello na cerimônia do Prêmio Jabuti de 2019
Roger Mello na cerimônia do Prêmio Jabuti de 2019, em São Paulo - Mathilde Missioneiro/Folhapress

Só que aqui o importante não é o currículo. Acontece que os últimos dez anos transbordam na leitura do lançamento mais recente do autor, "Espinho de Arraia", que demorou uma década para ficar pronto e acaba de ser publicado pela Global. "Sem querer, acabou virando uma biografia visual dos meus trabalhos", diz Roger em conversa pelo telefone, de Brasília, onde mora.

Falando assim, pode parecer que o título é uma obra autorreferente, pedante, como um dos tantos inventários de artista que pipocam por aí. Mas o livro toma um caminho diferente e prefere apostar numa ficção ilustrada sobre a Amazônia.

"Espinho de Arraia" se sustenta na conversa entre oito irmãos ribeirinhos imersos na floresta. Como não há um narrador claro e tudo aparece na forma de um diálogo teatral em que nunca sabemos quem está falando, o leitor acaba se perdendo no meio dessa mata. Como a narrativa gira ao redor de um desses garotos, ferroado pelo espinho de arraia do título, a febre dele serve de ferramenta literária para borrar as fronteiras entre o real e o delírio, os bichos e as gentes, os rios e as matas.

É desse ruído de vozes que aparecem animais como o uacari-branco e a tartaruga matamatá, cidades como Tefé, além de plantas, rios e toda a dinâmica social das populações ribeirinhas. Mas nada é muito definido. Matamatá, por exemplo, é também uma árvore, cercada por panapanás e aruanãs, que são capazes de engolir pessoas e levá-las ao fundo dos rios.

Mas o que a Amazônia tem a ver com a carreira de Roger? A literatura do ilustrador brota dos detalhes. Logo ao abrir o livro, a primeira ilustração recheada de crianças faz referência a "Meninos do Mangue", lançado pela Companhia das Letrinhas e um dos clássicos do autor. Mais adiante, aparecem borboletas amarelas, que conversam com "Lemon Butterfly" ("Borboleta Limão", em português, ainda sem edição no Brasil), parceria com o chinês Cao Wenxuan, também vencedor do Andersen.

É como se cada canto do livro trouxesse um pouco da obra de Roger. Entrego só mais uma pista —a textura do peixe aruanã é a mesma usada em partes de "Nau Catarineta", outro clássico do ilustrador, editado agora pela Global.

"O Ziraldo fala que livro é para sempre", conta Roger. "Não acho que precise demorar dez anos, mas esse foi dialogando com tudo o que fiz até agora."

Ilustração de Roger Mello que faz parte do projeto Amazônia Chama
Ilustração de Roger Mello que faz parte do projeto Amazônia Chama - Divulgação

Perceber todas essas referências, porém, não é imprescindível. Mesmo que ninguém note detalhes, diálogos e pontes, "Espinho de Arraia" para em pé por si só. Literalmente.

Com formato ousado e pouco usual, a capa dura da edição pode ser aberta de forma que surja uma arquitetura quadrangular, que permite ao objeto ficar em pé. É como se o livro se tornasse uma caixa de teatro ou uma instalação ilustrada, na qual as páginas quase desaparecem.

Livro "Espinho de Arraia", de Roger Mello
Ao ser aberto, "Espinho de Arraia" tem estrutura que permite com que o livre fique em pé - Arquivo Pessoal

"Isso cria uma relação com a estante, com a mesa, com a biblioteca, com o espaço de leitura da criança. É importante o livro descer da prateleira e interagir como elemento expositivo."

Quando aberto, o livro escancara uma Amazônia pintada de vermelho —cor complementar do verde, que seria a escolha mais óbvia. "O vermelho grita. Como trabalhei com o rio e com a floresta, escolhi o oposto da cor usual do que se espera de um rio e de uma floresta", afirma Roger.

Isso não é uma escolha só técnica, mas também narrativa. A Amazônia real também vive cores opostas nos últimos anos. A floresta que surge do livro é cor de sangue, assim como as matas de verdade veem escorrer o sangue yanomami, de Bruno Pereira, de Dom Phillips e de tantos outros.

Espinho de Arraia

  • Preço R$ 79 (40 págs.)
  • Autoria Roger Mello
  • Editora Global

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